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Contos de Howard - A Vingança de Black Vulmea (Originalmente publicado em 1938). Empty Contos de Howard - A Vingança de Black Vulmea (Originalmente publicado em 1938).

Qua Jan 11, 2012 12:28 am
Originalmente publicado na revista Golden Fleece em 1938)

1)

Black Terence Vulmea cambaleou para fora da cabine do Cacatua, cachimbo numa mão e jarro de vinho na outra. Suas pernas calçadas por botas estavam abertas, e ele oscilava levemente ao suave erguer da popa elevada. Sua cabeça estava descoberta e sua camisa aberta, revelando o peito largo e peludo. Ele esvaziou o jarro e o lançou para o lado, com um forte suspiro de satisfação; em seguida, dirigiu seu olhar meio turvo para o convés abaixo. Da escada de mão, na popa, até o castelo de proa, ele estava alastrado por formas esparramadas. O navio tinha cheiro de cervejaria. Barris vazios, com suas tampas arrombadas, se erguiam ou rolavam entre as figuras prostradas. Vulmea era o único homem de pé. Do jovem cozinheiro até o primeiro imediato, o restante dos companheiros jazia sem sentidos, após uma orgia que havia durado toda uma noite. Não havia sequer um homem no timão.

Mas este estava firmemente amarrado e, naquele mar calmo, nenhuma mão era necessária no leme. A brisa era leve, porém constante. A terra era uma fina linha azul ao leste. Um limpo céu azul sustentava um sol, cujo calor ainda não se tornara feroz. Vulmea piscou de forma indulgente sobre as formas esparramadas de sua tripulação, e olhou ociosamente sobre o lado do bombordo. Ele grunhiu incrédulo e bateu os olhos. Um navio avultava onde ele esperava ver apenas o oceano se estendendo até a linha do céu. Estava a menos de 100 metros de distância, e se aproximava rapidamente do Cacatua, obviamente com a intenção de derrubá-lo. O navio era alto e redondo, sua lona branca brilhando ofuscaste ao sol. Na plataforma principal, a bandeira da Inglaterra ondulava vermelha contra o azul. Seus parapeitos estavam alinhados por formas retesadas, que eriçavam suas lanças e ganchos de abordagem; e, através de seus resbordos (1) abertos, o atônico pirata vislumbrou o brilho de paus de fósforo acesos, aos quais os atiradores seguravam prontamente.

- Toda a tripulação aos seus postos de batalha! – gritou Vulmea, confuso. Roncos reverberantes respondiam aos chamados. Toda a tripulação permanecia como estava.

- Acordem, seus cães ordinários! – rugiu o capitão deles – Levantem-se, malditos! Um navio do rei está sobre nossas gargantas!

Sua única resposta veio na forma de comandos desconexos do convés da fragata, vociferados através da faixa estreita de água azul.

- Maldição!

Praguejando de forma medonha, ele se lançou numa corrida cambaleante através da popa até o canhão, o qual se encontrava à frente da escadaria do bombordo. Agarrando-o, ele o girou até sua boca perfurar em cheio o parapeito da fragata que se aproximava. Objetos giravam de forma atordoada diante de seus olhos injetados de sangue, mas ele entrecerrava os olhos ao longo do cano, como se estivesse apontando um mosquete.

- Abaixe sua bandeira, maldito pirata! – veio um grito da figura enfeitada que caminhava na popa do navio de guerra, de espada na mão.

- Vá pro inferno! – rugiu Vulmea, que lançou os carvões brilhantes de seu cachimbo dentro da abertura da culatra do canhão. A peça da arma se despedaçou, fumaça foi soprada para fora numa nuvem branca, e o duplo punhado de balas de mosquete, com a qual a arma havia sido carregada, fez uma medonha abertura no grupo de tábuas amontoadas ao longo do parapeito da fragata. Como um trovão, veio a bordada (2), e uma tempestade de metal varreu o convés do Cacatua, transformando-o num matadouro vermelho.

Velas se rasgaram, cordas se partiram, vigas se despedaçaram, e sangue e miolos se misturaram com as poças de bebida alcoólica derramada no convés. Uma bala redonda, do tamanho da cabeça de um homem, se espatifou na peça da parte traseira do canhão, arrancando-a do suporte e arremessando-a contra o homem que havia atirado. O impacto o lançou para trás e de ponta-cabeça através da popa, onde sua cabeça bateu no parapeito, com um estrondo que foi demais, até mesmo para um crânio irlandês. Black Vulmea caiu sem sentidos sobre as tábuas. Ele estava tão surdo, aos gritos triunfantes e ao bater de pés vitoriosos sobre seu convés salpicado de vermelho, quanto seus homens, que saíram do sono da embriaguez para o sono negro da morte, sem saberem como.


O Capitão John Wentyard, da fragata O Terrível, de Sua Majestade, bebericou delicadamente seu vinho e pôs o copo sobre a mesa, com um gesto que, em outro homem, teria sabor de afetação. Wentyard era um homem alto, com um rosto estreito e pálido, olhos sem cor e um nariz proeminente. Sua roupa era quase sóbria, em comparação às vestes cintilantes dos oficiais, que se sentavam em respeitoso silêncio ao redor da mesa de mogno, na cabine principal.

- Tragam o prisioneiro. – ele ordenou, com um lampejo de satisfação em seus olhos frios.

Eles trouxeram Black Vulmea, entre quatro marujos musculosos, as mãos acorrentadas na frente, e uma corrente em seus tornozelos, a qual era longa o bastante para permitir que ele caminhasse sem correr. Havia sangue coagulado no espesso cabelo negro do pirata. Sua camisa estava em frangalhos, revelando um tronco bronzeado pelo sol e ondulando com grandes músculos. Através das janelas da popa, ele podia ver os mastaréus das gáveas do Cacatua, acabando de sumirem de vista. Aquela bordada a curta distância havia privado a fragata de um prêmio. Seus vencedores estavam à sua frente, e não havia piedade em seus olhares, mas Vulmea não parecia de modo algum desconcertado ou intimidado. Ele encarou os olhos severos dos oficiais com um olhar equilibrado, que refletia apenas um divertimento zombeteiro. Wentyard franziu a testa. Preferia que seus prisioneiros se encolhessem de medo diante dele. Isso o fazia se sentir mais como a Justiça personificada, olhando friamente desde uma grande altura sobre os sofrimentos do mal.

- Você é Black Vulmea, o famigerado pirata?

- Sou Vulmea. – foi a resposta lacônica.

- Devo supor que você dirá, como fazem todos esses velhacos – escarneceu Wentyard –, que carrega uma comissão do Governador de Tortuga? Estas comissões de corso daquele francês nada significam para Sua Majestade. Você...

- Poupe seu fôlego, olho de peixe! – disse Vulmea, com um sorriso largo e duro – Não carrego comissão de ninguém. Não sou nenhum de seus malditos espadachins fanfarrões, que se escondem atrás do nome de bucaneiros. Sou um pirata, e já saqueei navios ingleses, assim como espanhóis... e maldito seja, bico-de-garça!

Os oficiais ofegaram diante deste atrevimento, e Wentyard abriu um sorriso medonho e sem alegria, branco da raiva à qual ele controlava.

- Você sabe que tenho autoridade para enforcá-lo imediatamente. – ele lembrou ao outro.

- Eu sei. – o pirata respondeu suavemente – Não seria a primeira vez em que você me enforcaria, John Wentyard.

- O quê? – o inglês arregalou os olhos.

Uma chama cresceu nos olhos azuis de Vulmea, e sua voz mudou subitamente de tom e inflexão; o sotaque irlandês se engrossou quase imperceptivelmente:

- Foi na costa de Galway, anos atrás, capitão. Você era um jovem oficial naquela época; pouco mais que um garoto... mas com toda a sua crueldade completamente desenvolvida. Houve algumas desapropriações em grande quantidade, com as tropas para verem que o trabalho estava sendo feito; e os irlandeses foram loucos o bastante para lutarem contra isso... camponeses pobres, esfarrapados e meio mortos de fome, lutando com bastões contra soldados e marinheiros ingleses completamente armados. Após o massacre e os habituais enforcamentos, um menino engatinhou para dentro de um matagal, para assistir... um garoto de 10 anos, que nem sequer sabia o que era aquilo tudo. Você o espionou, John Wentyard, mandou seus cães o arrastarem para fora, ao lado dos corpos contorcidos dos outros. “Ele é um irlandês”, você disse, enquanto eles o erguiam ao mastro. “Pequenas cobras se tornam grandes”. Eu era aquele garoto. E estava ansioso por este encontro, seu cão inglês!

Vulmea ainda sorria, mas as veias lhe inchavam nas têmporas e os grandes músculos se sobressaíam nitidamente em seus braços algemados. Apesar do pirata estar posto a ferros e vigiado por guardas, Wentyard recuou involuntariamente, atemorizado pelo ódio pleno e nu que ardia desde aqueles olhos selvagens.

- Como você escapou de seu merecido castigo? – ele perguntou, recuperando sua compostura.

Vulmea riu rispidamente:

- Alguns dos camponeses escaparam do massacre e ficaram escondidos nos matagais. Assim que vocês foram embora, eles saíram e, não sendo ingleses civilizados e refinados, mas apenas pobres irlandeses selvagens, eles me tiraram da forca junto com os outros, e perceberam que ainda havia um pouco de vida em mim. Nós, gaélicos, somos duros de matar, como vocês, britânicos, aprenderam à suas próprias custas.

- Você caiu facilmente em nossas mãos, desta vez. – observou Wentyard.

Vulmea sorriu largamente. Seus olhos estavam sombriamente divertidos agora, mas o brilho de ódio assassino ainda se escondia em suas profundezas.

- Quem pensaria em encontrar um navio real nestes mares ocidentais? Já faz semanas desde que avistamos uma vela de qualquer tipo, exceto pela nau que tomamos ontem, com um carregamento de vinho, que ia de Valparaíso para o Panamá. Esta não é a melhor época do ano para navios ricos. Quando os rapazes quiseram uma bebedeira, quem era eu para lhes negar? Saímos das rotas oceânicas que os espanhóis quase sempre seguem, e achávamos que tínhamos o oceano para nós mesmos. Fiquei dormindo em minha cabine por algumas horas, antes de sair ao convés para fumar um cachimbo ou algo semelhante, e lhe vi prestes a nos abordar sem disparar um tiro.

- Você matou sete de meus homens. – Wentyard acusou asperamente.

- E você matou todos os meus. – respondeu Vulmea – Pobres diabos, eles acordarão no inferno sem saber como chegaram lá.

Ele abriu ferozmente outro sorriso largo. Seus dedos dos pés pressionaram fortemente o chão, sem serem notados pelos homens que o seguravam a ambos os lados. O sangue lhe corria desenfreado pelas veias, e a sensação berserk de sua grande força estava sobre ele. Ele sabia que poderia, numa súbita explosão vulcânica de poder, se libertar dos homens que o seguravam; atravessar o espaço entre ele e seu inimigo com um salto, apesar de suas correntes, e esmagar o crânio de Wentyard com um giro despedaçador de seus punhos algemados. O fato dele próprio morrer no instante seguinte não tinha importância alguma. Naquele momento, ele não sentia medo nem arrependimento – apenas uma exultação indiferente e feroz, e um desprezo cruel por aqueles ingleses estúpidos ao seu redor. Ele riu de suas caras, alegrando-se no conhecimento de que eles não sabiam por que ele ria. Eles pensavam em acorrentar um tigre, não? Pouco sabiam da fúria devastadora que se escondia em seus músculos felinos.

Ele começou enchendo o grande peito, inspirando vagarosa e imperceptivelmente, enquanto suas panturrilhas se contraíam e os músculos de seus braços enrijeciam. Então, Wentyard falou novamente:

- Não estarei excedendo minha autoridade, se eu lhe enforcar daqui a uma hora. Em todo caso, você será enforcado, seja da verga de meu mastro ou de um patíbulo no cais de Port Royal. Mas a vida é doce, mesmo para patifes como você, que notoriamente se agarram a cada momento que lhes é concedido pela sociedade ultrajada. Você ganharia mais alguns meses de vida se eu lhe levasse de volta à Jamaica para ser sentenciado pelo governador. Eu poderia ser persuadido a fazer isto, com uma condição.

- E qual é? – os músculos retesados de Vulmea não relaxaram; imperceptivelmente, ele começou a ficar semi-agachado.

- Que você me diga por onde o pirata Van Raven.

Naquele instante, embora seus músculos intumescidos tivessem relaxado novamente, Vulmea infalivelmente observou e avaliou o homem que o encarava, e mudou de plano. Ele se endireitou e sorriu.

- E por que o holandês, Wentyard? – ele perguntou suavemente – Por que não Tranicos, Villiers ou McVeigh, ou uma dúzia de outros, mais destrutíveis ao comércio inglês do que Van Raven? É por causa do tesouro que ele pegou da esquadra espanhola? Sim, o rei adoraria pôr as mãos naquele tesouro, e há um rico prêmio ao capitão, sortudo ou corajoso o bastante, que encontrar Van Raven e saqueá-lo. É por isso que você atravessou toda essa distância ao redor de Cabo Horn, John Wentyard?

- Estamos em paz com a Espanha. – Wentyard respondeu acidamente – Quanto aos propósitos de um oficial da marinha de guerra de Sua Majestade, não lhe cabe questioná-los.

Vulmea riu dele, com a chama azul em seus olhos.

- Uma vez, afundei um navio de guerra do rei, próximo à costa da Ilha de São Domingos. – ele disse – Maldito seja você e sua tagarelice de “Sua Majestade”! Seu rei inglês não vale para mim mais do que muita madeira podre flutuando. Van Raven? Ele é um pássaro de passagem. Quem sabe onde ele navega? Mas, se é tesouro que você quer, posso lhe mostrar um que faria a pilhagem do holandês parecer um poço d’água ao lado do Mar do Caribe!

Uma pálida fagulha parecia estalar nos olhos sem brilho de Wentyard, e seus oficiais se curvaram tensamente para a frente. Vulmea sorriu larga e duramente. Ele conhecia a credulidade dos homens da marinha de guerra, a qual eles partilhavam com homens da terra e marinheiros honestos, em relação a piratas e pilhagem. Cada homem do mar que não fosse pirata achava que cada bucaneiro tinha o conhecimento de uma vasta riqueza escondida. O espólio que os homens da Irmandade Vermelha tomaram dos espanhóis, apesar de bastante rico, era exagerado mil vezes nas histórias, e os rumores faziam de cada arrogante rato-do-mar o guardião de um tesouro pilhado de dono desconhecido.

Sondando friamente a avareza na alma dura de Wentyard, Vulmea disse:

- A dez dias de viagem daqui, tem uma baía sem nome na costa do Equador. Quatro anos atrás, Dick Harston, o pirata inglês, e eu, ancoramos lá, em busca de um tesouro de antigas jóias, chamadas As Presas de Satã. Um índio jurava tê-las encontrado, escondidas num templo em ruínas numa selva inabitada a um dia de caminhada terra adentro, mas o medo supersticioso o impedia de ir lá. Contudo, ele estava disposto a nos guiar até lá.

“Marchamos terra adentro com ambas as tripulações, pois nenhum de nós confiava no outro. Para encurtar a história, encontramos as ruínas de uma velha cidade e, sob um antigo altar quebrado, achamos as jóias: rubis, diamantes, esmeraldas, safiras e jaspes sangüíneos, tão grandes quanto ovos de galinha, lançando uma flama trêmula de fogo ao redor do velho santuário em ruínas!”.

A chama cresceu nos olhos de Wentyard. Seus dedos brancos se emaranharam ao redor da base fina de seu copo de vinho.

- A visão delas era suficiente para enlouquecer um homem... – Vulmea continuou, observando estreitamente o capitão – Acampamos lá durante a noite e, de uma forma ou de outra, nos desentendemos uns com os outros sobre a divisão do espólio, embora houvesse o suficiente para tornar cada um de nós rico por toda a vida. Pusemos-nos a golpear uns aos outros, no entanto, e enquanto lutávamos entre nós mesmos, um batedor veio correndo com a notícia de que uma frota espanhola havia adentrado a baía, afastado nossos navios e mandado 500 homens à praia para nos perseguir. Por Satã, eles estavam sobre nós, antes que o batedor terminasse de contar a história! Um dos meus homens levou a pilhagem e a escondeu no velho templo, e nós nos dispersamos, cada bando por si. Não havia tempo de levar o saque. Mal conseguimos escapar com nossas próprias vidas. Finalmente eu, com quase toda minha tripulação, me dirigi de volta à costa e fui resgatado por meu navio, o qual retornou furtivamente, após escapar dos espanhóis.

“Harston pegou seu navio com um punhado de homens, após travar escaramuças por todo o caminho com os espanhóis, os quais o perseguiram ao invés de nós, e, mais tarde, foi morto por selvagens na costa da Califórnia.

“Os nobres espanhóis me perseguiram por todo o caminho ao redor de Cabo Horn, e eu nunca tive uma oportunidade de voltar em busca da pilhagem – até esta viagem. Era para lá que eu estava indo, quando você me alcançou. O tesouro ainda está lá. Prometa-me minha vida e eu o pegarei para você”.

- Isto é impossível. – retrucou Wentyard – O melhor que posso lhe prometer é um julgamento diante do governador da Jamaica.

- Bem. – disse Vulmea – Talvez o governador da Jamaica possa ser mais clemente que você. E muita coisa pode acontecer daqui até a Jamaica.

Wentyard não respondeu, mas estendeu um mapa sobre a mesa larga.

- Onde é esta baía?

Vulmea indicou um certo ponto na costa. Os marujos diminuíram o aperto ao redor de suas armas enquanto ele assinalava, e a cabeça de Wentyard estava ao alcance, mas os planos do irlandês haviam mudado, e eles incluíam uma chance de vida – desesperada, mas, apesar disso, uma chance.

- Muito bem. Levem-no para baixo.

Vulmea se retirou com seus guardas, e Wentyard sorriu zombeteira e friamente:

- Um cavalheiro da armada de Sua Majestade não está amarrado a nenhuma promessa feita a um patife como ele. Assim que o tesouro estiver a bordo do Terrível, cavalheiros, prometo que ele ficará pendurado na verga de um mastro.


2)

Dez dias depois, as âncoras desceram ruidosamente na baía sem nome que Vulmea havia descrito.

Parecia desolada o bastante para ter sido a costa de um continente inabitado. A baía era meramente uma reentrância rasa da margem. Selva espessa se aglomerava na faixa estreita de areia branca que era a praia. Pássaros de plumas vistosas voavam por entre as largas folhas de palmeira, e o silêncio da selvageria primordial pairava sobre tudo. Mas uma trilha indistinta guiava de volta para dentro das sombrias alamedas de mistério murado de verde.

A aurora era uma bruma branca sobre a água, quando 17 homens marcharam em direção à trilha obscura. Um deles era John Wentyard. Numa expedição designada para encontrar tesouros, ele não confiava o comando a ninguém, exceto a si mesmo. Os outros 15 eram soldados, armados com sabres de abordagem e mosquetes. O décimo-sétimo era Black Vulmea. As pernas do irlandês, forçosamente, estavam livres, e o ferro havia sido removido de seus braços. Mas seus pulsos estavam amarrados à sua frente com cordas, e uma extremidade da corda estava segura por um marinheiro musculoso, cuja outra mão segurava um sabre pronto para decepar o pirata, caso ele fizesse qualquer movimento para escapar.

- Quinze homens são suficientes. – Vulmea havia dito a Wentyard – Muitos! Homens enlouquecem facilmente nos trópicos, e a visão das Presas de Satã é suficiente para enlouquecer qualquer homem, a serviço de um rei ou não. Quanto mais as jóias forem vistas, maior a chance de motim antes que você volte a se aproximar de Cabo Horn. Você não precisa de mais do que três ou quatro. Está com medo de quê? Você disse que a Inglaterra está em paz com a Espanha, e não há espanhóis em nenhum lugar perto deste ponto, em todo caso.

- Eu não estava pensando em espanhóis. – respondeu Wentyard friamente – Estou me precavendo contra qualquer tentativa que você possa fazer de fugir.

- Bem – riu Vulmea –, você acha que precisa de 15 homens para isso?

- Eu não me arrisco. – foi a sombria réplica mordaz – Você é mais forte que dois ou três homens comuns, Vulmea, e cheio de artimanhas. Meus homens marcharão com as armas prontas, e se você tentar fugir, eles lhe matarão a tiros, como o cão que você é... se você, por algum acaso, evitar ser despedaçado por seu guarda. Além disso, sempre há a possibilidade de existirem selvagens.

O pirata zombou:

- Vá para além das Cordilheiras, se você procura selvagens de verdade. Lá, há índios que cortam sua cabeça e a encolhem até ficar menor que seu punho. Mas eles nunca vieram para este lado das montanhas. Quanto à raça que construiu o templo, estão todos mortos há séculos. Traga sua escolta armada, se quiser. Não será necessária. Um homem forte é capaz de carregar todo o tesouro.

- Um homem forte! – murmurou Wentyard, lambendo os lábios, enquanto sua mente dava voltas diante do pensamento da riqueza representada por um carregamento de jóias, que exigiam toda a força de um homem forte para carregá-las. Visões confusas de cavalaria e posto de almirante rodopiavam por sua cabeça – E quanto à trilha? – ele perguntou, desconfiado – Se esta costa é inabitada, por que ela está aí?

- Era uma velha estrada, há séculos atrás, usada provavelmente pela raça que construiu a cidade. Em alguns lugares, você pode ver onde ela foi pavimentada. Mas Harston e eu fomos os primeiros a usá-la em séculos. E você pode perceber que ela não foi usada desde então. Você pode ver que a vegetação nova cresceu sobre as marcas dos machados que usamos para abrir caminho.

Wentyard foi forçado a acreditar. Agora, antes do nascer do sol, o grupo que desembarcava se dirigia terra adentro em caminhada firme que devorava as milhas. A baía e o navio logo se perderam de vista. Por toda a manhã, caminharam num calor escaldante, entre verdes e emaranhadas muralhas de selva, onde pássaros de cores alegres voavam silenciosamente, e macacos cavaqueavam. Grossas videiras pendiam de um lado a outro da trilha, lhes atrapalhando o avanço, e eles eram duramente incomodados por mosquitos e outros insetos. Ao meio-dia, pararam por tempo suficiente para beberem um pouco de água e comerem o alimento já cozido que haviam trazido. Aqueles homens eram veteranos impassíveis, habituados a longas marchas, e Wentyard não lhes permitiria mais descanso do que o necessário para sua breve refeição. Ele estava incendiado pela selvagem ânsia de ver o tesouro que Vulmea havia descrito.

A trilha não serpenteava muito, como a maioria dos caminhos na selva. Estava coberta por vegetação, mas dava evidência de que outrora havia sido uma estrada, bem construída e larga. Pedaços de pavimentação ainda eram visíveis aqui e ali. Pelo meio da tarde, a terra começou a subir ligeiramente, até ser interrompida por colinas baixas e sufocadas pela selva. Eles só sabiam disso devido ao subir e descer da trilha. As densas muralhas de ambos os lados lhes impediam a visão.

Nem Wentyard, nem qualquer um de seus homens, haviam vislumbrado as formas furtivas e indistintas, que agora deslizavam através da selva em ambos os lados. Vulmea lhes havia percebido a presença, mas ele apenas sorriu sombriamente e nada falou. Cuidadosamente, e de forma tão sutil que seu guarda não suspeitou, o pirata se ocupava das cordas em seus pulsos, enfraquecendo e esticando as mesmas, através de contínuos puxões e torções. Ele havia feito isto o dia inteiro, e era capaz de senti-las cederem lentamente.

O sol estava baixo nos galhos da selva, quando o pirata parou e apontou para onde a velha estrada se curvava num ângulo quase reto, e desaparecia dentro da entrada de uma ravina.

- Dentro daquela ravina fica o velho templo onde as jóias estão escondidas.

- Vamos adiante, então! – falou bruscamente Wentyard, se abanando com seu chapéu emplumado. O suor lhe escorria pelo rosto, enrugando a gola de seu casaco escarlate e bordado a ouro. Havia um frenesi de impaciência nele, seus olhos maravilhados pelo brilho imaginário das jóias que Vulmea havia descrito tão vividamente. Cobiça resulta em credulidade, e nunca ocorreu a Wentyard duvidar da história de Vulmea. Ele via no irlandês apenas um bruto enorme, ansioso para comprar poucos meses a mais de vida. Os cavaleiros da armada de Sua Majestade não estavam acostumados a analisar o caráter dos piratas. O código de Wentyard era dolorosamente simples: uma mão pesada e uma franqueza arrogante. Ele nunca se incomodou em estudar, ou tentar entender, tipos fora-da-lei.

Eles adentraram a boca da ravina e continuaram marchando, entre pedaços margeados por pendentes folhas de palmeiras. Wentyard se abanava com o chapéu, e mastigava o próprio lábio com impaciência, enquanto mirava ansiosamente ao redor, em busca de algum sinal das ruínas descritas por seu prisioneiro. Seu rosto estava mais pálido do que nunca, apesar do calor que avermelhava os rostos rudes de seus homens, ao quais caminhavam pesadamente atrás dele. A face morena de Vulmea não se mostrava excessivamente suada. Ele não marchava: movia-se com o passo seguro e flexível de uma pantera, e sem qualquer sugestão do andar cambaleante de um homem do mar. Seus olhos exploravam as paredes acima deles e, quando uma folha de palmeira balançou sem qualquer sopro de vento para movê-la, ele não deixou de notar.

A ravina tinha quatro metros e meio de largura, e o chão atapetado por uma vegetação baixa e espessa. A selva era densa ao longo das margens dos muros, os quais tinham uns 12 metros de altura. Eram perpendiculares em quase toda a parte, mas, aqui e ali, rampas naturais desciam para dentro da ravina, meio cobertas por videiras emaranhadas. A poucas centenas de metros adiante, eles avistaram a ravina fazer uma curva para fora da vista, ao redor de uma saliência rochosa. Na parede oposta, se ressaltava uma saliência semelhante. Os contornos destes matacões eram manchados por musgo e trepadeiras, mas pareciam muito simétricos para serem trabalho apenas da natureza.

Vulmea parou, perto de uma das rampas naturais que se inclinavam desde a borda. Seus captores olharam ansiosamente para ele.

- Por que está parando? – exigiu Wentyard, impacientemente. Seu pé bateu em algo, na grama exuberante, e ele a chutou fora. Rolou solta e arreganhou os dentes para ele: uma apodrecida caveira humana. Ele viu brilhos brancos em todo o verde ao seu redor: crânios e ossos quase cobertos pela densa vegetação.

- Foi aqui onde seus cães piratas mataram uns aos outros? – ele indagou, mal-humorado – O que você ainda está esperando? O que está escutando?

Vulmea relaxou sua atitude tensa e sorriu com condescendência.

- Aquilo à nossa frente costumava ser uma passagem para nós. – ele disse – Aquelas rochas a cada lado são de fato pilares do portão. Esta ravina era uma estrada de rua, que guiava até a cidade, quando pessoas viviam lá. É o único acesso para ela, pois é cercada por penhascos íngremes em todos os lados. – ele riu rudemente: – É como a estrada para o Inferno, John Wentyard: fácil de entrar... não tão fácil de sair.

- O que você está balbuciando? – rosnou Wentyard, batendo rancorosamente o chapéu na cabeça – Vocês, irlandeses, são todos uns tagarelas e idiotas! Vamos continuar com...

Da selva além da entrada da ravina, veio um som agudo. Algo gemeu venenosamente pelo desfiladeiro, terminando seu vôo com uma pancada perversa. Um dos soldados se sufocou e estremeceu convulsivamente. Seu mosquete caiu ruidosamente ao chão, e ele cambaleou, agarrando a própria garganta, da qual se sobressaía uma longa seta, vibrante como a cabeça de uma serpente. Súbito, ele também caiu ao chão e jazeu se contorcendo.

- Índios! – ganiu Wentyard, e depois se voltou furiosamente para seu prisioneiro: – Cão! Olhe para isso! Você disse que não havia selvagens por aqui.

Vulmea riu com desdém:

- Você os chama de selvagens? Bah! Cães pobres de espírito, que se escondem na selva, amedrontados demais para se mostrarem na costa. Você não os vê se moverem furtivamente por entre as árvores? É melhor dar uns tiros neles, antes que fiquem muito ousados.

Wentyard rosnou para ele, mas o inglês conhecia a utilidade de uma exibição de armas de fogo, quando lidava com nativos. Ele vociferou uma ordem, 14 mosquetes dispararam e as balas estrondearam por entre as folhas. Algumas folhas cortadas de palmeiras caíram, e mais nada. Mas, enquanto a fumaça formava uma nuvem, Vulmea partiu as cordas desfiadas em seus pulsos, deixou seu guarda cambaleando com um tapa sob a orelha, se apoderou de seu sabre e foi embora, subindo feito um gato a muralha íngreme da ravina. Os soldados, com seus mosquetes vazios, ficaram boquiabertos e indefesos atrás dele, e a pistola de Wentyard atirou futilmente, num momento muito tardio. Da orla verde, veio uma gargalhada zombeteira:

- Idiotas! Vocês estão na porta do Inferno!

- Cão! – gritou Wentyard, fora de si, mas com sua cobiça ainda predominante em sua mente embriagada – Encontraremos o tesouro sem sua ajuda!

- Você não pode achar algo que não existe. – retrucou o escondido pirata – Nunca houve jóias. Foi uma mentira, para lhe atrair para dentro de uma armadilha. Dick Harston nunca veio aqui. Eu estive aqui, e os índios massacraram toda a minha tripulação naquela ravina, como aqueles crânios na grama atestam.

- Mentiroso! – era tudo o que Wentyard conseguia dizer – Cão mentiroso! Você disse que não havia índios por aqui!

- Eu lhe disse que os caçadores de cabeças nunca subiram as montanhas. – replicou Vulmea – Eles também não. Eu lhe disse que o povo, o qual construiu a cidade, estava totalmente morto. Isso também é verdade. Eu não lhe falei que uma tribo de selvagens marrons vive na selva perto daqui. Eles nunca descem até a costa, e não gostam que homens brancos adentrem a selva. Acho que eles são o povo que destruiu a raça que construiu a cidade, há muito tempo. De qualquer modo, eles massacraram meus homens, e a única razão pela qual escapei foi porque já vivi com os homens vermelhos da América do Norte, e absorvi deles o conhecimento e experiência de vida nas florestas. Você está numa armadilha da qual não sairá, Wentyard!

- Subam aquela parede e peguem-no! – ordenou Wentyard, e meia-dúzia de homens lançaram os mosquetes nas costas e começaram a subir desajeitadamente a rampa áspera à qual o pirata galgara com facilidade felina.

- É melhor arrumarem o navio e estarem lá para repelir invasores. – Vulmea o avisou lá de cima – Há centenas de demônios vermelhos do outro lado... e nenhum cão domado, para fugir diante do estalar de um arcabuz também.

- E você trairia homens brancos para selvagens! – Wentyard se enfureceu.

- Vai de contra meus princípios. – o irlandês admitiu –, mas era minha única chance de vida. Lamento por suas vidas. Foi por isso que lhe avisei para trazer apenas um punhado. Eu quis poupar tantos quanto possível. Do outro lado da selva, há índios suficientes para engolir toda a sua companhia do navio. Quanto a você, seu cão sujo, o que você fez na Irlanda lhe tirou o direito a qualquer consideração que você poderia esperar de um homem branco. Arrisquei meu pescoço e assumi todos os riscos com todos vocês. Aquela flecha poderia ter atingido a mim.

A voz parou abruptamente e, enquanto Wentyard se perguntava se não havia índios na parede acima deles, a folhagem foi violentamente agitada, soou lá um grito selvagem e caiu um desnudo corpo moreno, totalmente esparramado, os membros girando no ar; ele se espatifou no chão da ravina e jazeu imóvel – a forma de um guerreiro musculoso, vestido somente com uma tanga de casca de árvore. O morto tinha peito profundo, ombros largos e era musculoso, com feições inteligentes, porém duras e brutais. Ele havia tido o pescoço cortado de um lado a outro.

As moitas se agitaram brevemente, e depois novamente e mais adiante ao longo da beirada, o que Wentyard acreditava marcar a fuga do irlandês ao longo da parede da ravina, perseguido pelos companheiros do guerreiro morto, o qual deve ter se movido furtivamente sobre Vulmea, enquanto o pirata gritava seus escárnios.

A perseguição foi feita em silêncio mortal, mas, na parte de baixo da ravina, as condições eram tudo, menos silenciosas. Diante da visão do corpo que caía, uma gritaria de gelar o sangue explodiu da selva do lado de fora da entrada da ravina, e uma tempestade de flechas veio assobiando através dela. Outro homem caiu, mais três foram feridos e Wentyard mandou descerem os homens que laboriosamente se esforçavam para subir a inclinação emaranhada de trepadeiras. Ele recuou pela ravina, quase até a curva onde os antigos pilares do portão se sobressaíam, e temeu ir além daquele ponto. Ele tinha certeza de que a ravina além do Portão estava cheia de selvagens escondidos. Eles não o cercariam por todos os lados, para deixarem aberto um caminho de fuga.

No ponto onde ele parou, havia um agrupamento de rochas quebradas, que pareciam ter formado outrora as paredes de algum antigo tipo de construção. Entre elas, Wentyard fez sua resistência. Ele ordenou a seus homens que ficassem deitados de bruços, com os canos de seus mosquetes repousando nas rochas. Ele destacou um dos homens para observar, em busca de selvagens galgando a ravina por trás deles; os outros observavam a muralha verde, visível além da trilha que seguia para dentro da boca da ravina. O medo arrepiou o coração de Wentyard. O sol já havia desaparecido atrás das árvores, e as sombras se alongavam. No breve escurecer do pôr-do-sol tropical, como poderia o olho de um homem branco perceber um rápido e esvoaçante corpo marrom, ou uma bala de mosquete acertar seu alvo? E, quando escuridão caiu... Wentyard tremeu, apesar do calor.

Flechas continuavam cantando ravina adentro, mas tinham alcance curto, ou se estilhavam nas rochas. Mas agora, arqueiros escondidos nas paredes lançavam suas flechas para baixo e, do ponto de vantagem deles, as pedras ofereciam pouca proteção. Os gritos de homens espetados ao chão se erguiam angustiantes. Wentyard viu seus soldados morrerem sob seus olhos. A única coisa que os salvou de serem instantaneamente exterminados foram os disparos constantes, que mantinham em direção à folhagem sobre os penhascos. Eles raramente viam seus inimigos; só viam as folhas de palmeira se sacudirem e tinham um vislumbre ocasional de um braço marrom. Mas as pesadas balas, atravessando as folhas largas, deixaram os arqueiros ocultos cautelosos, e as setas saíram a intervalos ao invés de torrentes. Num momento, um grito penetrante de morte anunciou que uma bala cega havia encontrado o alvo, e o inglês lançou um coaxante grito de alegria.

Talvez tenha sido isto o que trouxe os guerreiros enfurecidos para fora da selva. Talvez, assim como os brancos, eles não gostassem de lutar no escuro e quisessem concluir a matança antes que a noite caísse. Talvez eles já estivessem envergonhados de ficarem escondidos de um punhado de homens.

De qualquer modo, saíram subitamente da selva além da trilha, e às vintenas – não magricelas primitivos, mas guerreiros robustos, com músculos firmes, confiantes em sua força e fisicamente páreos até mesmo para os ingleses fortes. Vieram numa onda de corpos marrons, a qual subitamente inundou a ravina, e outros pularam do alto das paredes, balançando nos cipós. Eram centenas contra um punhado de ingleses desajeitados. Estes se ergueram das rochas sem ordens, enfrentando a morte com a teimosia tenaz de sua raça. Lançaram uma saraivada em cheio na maré de rostos rosnantes que rolava sobre eles, e então puxaram as espadas curtas de seus cintos e usaram os mosquetes vazios como porretes. Não havia tempo para recarregar. A carga deles abriu caminho na torrente humana que se aproximava, mas esta não vacilou; ela veio e engolfou os homens brancos num redemoinho rosnante, mutilador e esmagador.

Espadas curtas zuniam e atravessavam carne e ossos, mosquetes se levantavam e caíam, fazendo miolos espirrarem. Mas os machados de lâmina de cobre brilhavam sombriamente ao crepúsculo, porretes faziam uma ruína vermelha nos crânios aos quais tocavam, e havia vinte braços vermelhos para arrastarem para baixo cada homem branco que se debatia. A ravina estava entupida com uma massa moedora e redemoinhante, girando ao redor de um aglomerado que morria rapidamente, de formas desesperadas e de pele branca.

Wentyard não fugiu até que seu último homem caísse, o sangue lhe lambuzando os braços e pingando de sua espada. Ele foi encurralado por um círculo que rolava, de figuras ferozes, mas ainda tinha uma pistola carregada. Ele atirou em cheio num rosto pintado, no alto de um peito emplumado, e o viu desaparecer numa ruína sangrenta. Ele bateu numa cabeça raspada com o cano vazio do mosquete, e correu através do vazio feito pelos corpos que caíam. Uma figura selvagem pulou à frente dele, girando um porrete de guerra, mas a espada foi mais rápida. Wentyard puxou a lâmina enquanto o selvagem caía. A penumbra estava decaindo rapidamente em escuridão, e as figuras que rodopiavam ao seu redor estavam ficando indistintas, com o contorno vago. O crepúsculo decaiu rapidamente na ravina, e a escuridão estava acomodada ali, antes que ela cobrisse a selva do lado de fora. Foi a escuridão que salvou Wentyard, confundindo os atacantes. Quando o índio atravessado pela espada caiu, ele se viu livre, embora houvesse homens correndo atrás dele, com os porretes erguidos.

Ele desapareceu rapidamente na ravina. Ela estava vazia à sua frente. O medo deu asas aos seus pés. Ele correu através da pedra encostada ao Portão. Além dele, ele viu a ravina se alargar; paredes de pedra se erguiam à sua frente, quase escondidas por videiras e trepadeiras, e perfuradas por janelas e portadas vazias. Sua pele se arrepiou com a expectativa momentânea de uma estocada nas costas. Seu coração batia tão ruidosamente, e o sangue martelava de forma tão angustiante em suas têmporas, que ele não conseguiria dizer se pés descalços batiam ou não bem atrás dele.

Seu chapéu e casaco haviam desaparecido, sua camisa estava rasgada e manchada de sangue, embora, de alguma forma, ele houvesse atravessado aquela luta desesperada sem ferimento algum. Diante de si, ele viu uma parede emaranhada por videiras, e uma portada sem porta. Correu cambaleando portada adentro e se virou, caindo sobre o joelho em total exaustão. Ele sacudiu o suor dos olhos, ofegando convulsivamente, enquanto tentava desajeitadamente recarregar suas pistolas. A ravina era uma passagem pouco visível diante dele, a qual corria para a curva sustentada por rochas. A cada momento, ele esperava vê-la apinhada por rostos ferozes, por bandos de figuras. Mas estava vazia, e os gritos ferozes dos guerreiros vitoriosos não se aproximavam. Por algum motivo, eles não o haviam seguido através do Portão.

O terror deles poderem estar se movendo furtivamente sobre ele por trás o colocou de pé, as pistolas engatilhadas, encarando aqui e ali.

Ele estava numa sala, cujas paredes de pedra pareciam prestes a desmoronar. Não tinham teto, e a grama crescia entre as pedras quebradas do chão. Através do teto escancarado, ele conseguia ver as estrelas piscando, e a beirada, margeada por folhas de palmeiras, do penhasco. Através de uma porta oposta àquela na qual se agachava, ele teve um vago vislumbre de outras câmaras além – sufocadas por vegetação e sem teto.

O silêncio pairava sobre as ruínas, e agora o silêncio havia caído além da curva da ravina. Ele fixou os olhos na mancha indistinta que era o Portão, e esperou. Estava vazio. Mas ele sabia que os índios estavam conscientes de sua fuga. Por que eles não correram para dentro dali e lhe cortaram a garganta? Eles tinham medo de suas pistolas? Eles não demonstraram medo dos mosquetes de seus soldados. Eles foram embora, por alguma razão inexplicável? Estas câmaras sombrias atrás dele estariam cheias de guerreiros escondidos? Se sim, por que, em nome de Deus, eles estavam esperando?

Ele se levantou e dirigiu-se à porta oposta, esticou cautelosamente o pescoço e, após alguma hesitação, entrou na câmara adjacente. Ela não tinha saída dentro da abertura. Todas as suas portas levavam para outras câmaras, igualmente em ruínas, com tetos quebrados, chãos partidos e paredes desagregadas. Ele atravessou três ou quatro; seu passo, ao esmagar a vegetação que crescia entre as pedras quebradas, parecia intoleravelmente alto no silêncio. Abandonando suas explorações – pois o labirinto parecia infinito –, ele retornou à sala que se abria em direção à ravina. Nenhum som saía do desfiladeiro, mas estava tão escuro sob o penhasco que homens poderiam ter entrado no Portão e estarem agachados próximos a ele, sem que ele fosse capaz de vê-los.

Por fim, ele não conseguiu mais agüentar a ansiedade. Caminhando tão silenciosamente quanto podia, deixou as ruínas e se aproximou do Portão – agora um poço de escuridão. Poucos momentos depois, ele estava agarrando o pilar esquerdo e forçando os olhos para enxergar dentro da ravina além. Estava escura demais para ver algo mais do que estrelas piscando sobre as beiradas das paredes. Ele deu um passo cauteloso além do Portão... foi o rápido assobiar de pés, através da vegetação no solo, que lhe salvou a vida. Ele sentiu, mais do que viu, uma forma negra avultar da escuridão, e atirou cegamente e à queima-roupa. O clarão iluminou um rosto feroz, caindo para trás e, além dele, o inglês vislumbrou fracamente outras figuras, sólidas fileiras delas rolando inexoravelmente em sua direção.

Com um grito sufocado, ele se lançou para trás, ao redor do pilar do portão, tropeçou, caiu e jazeu mudo e trêmulo, apertando os dentes contra a agonia aguda que ele esperava, na forma de uma estocada de lança. Ninguém veio. Nenhuma figura veio pulando atrás dele. Incrédulo, ele se pôs de pé, as pistolas lhe tremendo nas mãos. Eles estavam esperando, além daquela curva, mas não atravessavam o portão, nem mesmo para saciarem sua sede de sangue. Este fato o tomava de assalto, com sua implicação de mistério inexplicável.

Cambaleante, ele retornou às ruínas e tateou dentro da portada negra, dominando uma aversão instintiva contra adentrar a câmara sem teto. A luz das estrelas brilhava através do teto quebrado, iluminando um pouco a escuridão; mas sombras negras se amontoavam ao longo das paredes, e a porta interna era uma parede negra de mistério. Como muitos ingleses de sua geração, Wentyard acreditava muito em fantasmas, e sentiu que, se havia um lugar adequado para ser assombrado por espectros de uma era perdida e esquecida, eram estas ruínas sombrias.

Ele olhou temerosamente, através do teto quebrado, para a margem de folhas de palmeiras que pendiam sobre os penhascos acima, e sem movimento no ar parado, e se perguntou se o nascer da lua, iluminando seu refúgio, traria flechas descendo através do teto. Exceto pelo grito distante e solitário de um pássaro noturno, a selva estava quieta. Não havia nada semelhante ao sussurrar de uma folha. Se havia homens no penhasco, não havia qualquer sinal disso. Ele estava consciente da fome e de uma sede que aumentava; a raiva o corroia, assim como um medo que já estava levemente colorido de pânico.

Ele se agachou no vão da porta, pistolas nas mãos e a espada nua no joelho; e, após algum tempo, a lua se ergueu, tingindo as folhas pendentes de palmeiras com prata, antes mesmo dela sair das árvores e se erguer alto o bastante para derramar sua luz sobre os penhascos. Sua luz invadiu as ruínas, mas nenhuma flecha veio do rochedo, nem houve qualquer som além do Portão. Wentyard enfiou a cabeça através da porta e examinou seu refúgio.

A ravina, após passar entre os antigos pilares do portão, se abria para uma larga concavidade, murada por penhascos e intacta, exceto pela entrada da própria ravina. Wentyard viu a borda de uma linha contínua e toscamente circular, agora orlada pelo fogo do luar. As ruínas, nas quais ele havia se refugiado, quase preenchiam esta concavidade, sendo pressionadas contra os penhascos em um dos lados. Videiras apodrecidas e sufocantes quase haviam apagado o plano arquitetônico original. Ele viu a estrutura como um labirinto de câmaras sem teto, as portas externas se abrindo sobre o largo espaço deixado entre ela e a parede oposta do penhasco. Este espaço era coberto por vegetação baixa e densa, a qual também cobria algumas das salas.

Wentyard não viu meios de escapar. Os penhascos não eram como as paredes da ravina. Eram de rocha sólida e íngreme, se sobressaindo até um pouco diante da beirada. Nenhuma videira pendia deles. Não se erguiam muitos metros acima dos tetos quebrados das ruínas, mas estavam tão longe de seu alcance quanto se medissem 300 metros. Estava encurralado como um rato numa ratoeira. A única saída era deixar a ravina, onde guerreiros ansiosos por sangue aguardavam com paciência sombria. Ele se lembrou do aviso zombeteiro de Vulmea: “Como a estrada para o Inferno: fácil de entrar, não tão fácil de sair!”. Ardentemente, ele desejou que os índios tivessem pegado o irlandês e o matado lenta e dolorosamente. Ele seria capaz de assistir, com intensa satisfação, Vulmea ser esfolado vivo.

No momento seguinte, apesar da fome, sede e medo, ele adormeceu, para sonhar com templos antigos, onde tambores murmuravam e estranhas figuras em mantos de penas de papagaios se moviam através da fumaça de fogos sacrificais; e, finalmente, ele sonhou com uma forma silenciosa e hedionda, que adentrara a porta interna de sua sala sem teto e o fitava com olhos frios e inumanos.

Foi deste sonho que ele acordou, banhado em suor frio, para se erguer de um pulo com um grito incoerente, agarrando as pistolas. Então, totalmente desperto, ele ficou no meio da sala, tentando reunir seu raciocínio disperso. A lembrança do sonho era vaga, porém aterradora. Ele teria realmente visto uma sombra oscilar na porta e desaparecer quando ele acordou, ou teria isto sido apenas parte de seu pesadelo? A lua vermelha e assimétrica estava suspensa na beirada oeste dos penhascos, e aquele lado da concavidade estava em escuridão total, mas mesmo assim, uma luz ilusória adentrou as ruínas. Wentyard espionou através da portada interna, com as pistolas engatilhadas. A luz mais flutuava do que escorria do alto, e mostrava a ele uma sala vazia além. A vegetação do chão estava esmagada, mas ele se lembrava de ter andado de um lado a outro dele, por várias vezes.

Amaldiçoando sua imaginação nervosa, ele retornou à portada externa. Ele falou a si mesmo que escolheu aquele lugar como o melhor para proteger contra um ataque da ravina, mas a verdadeira razão era de que ele não poderia se decidir a selecionar um ponto mais profundo no interior escuro das antigas ruínas.

Ele se sentou de pernas cruzadas bem dentro da portada, suas costas contra a parede, as pistolas ao lado e a espada deitada sobre os joelhos. Seus olhos ardiam e seus lábios se sentiam assados pela sede que o torturava. A visão dos grandes glóbulos de orvalho na grama quase o enlouqueceu, mas não buscou matar sua sede dessa forma, acreditando que era veneno fétido; ele puxou o cinto para mais perto, contra sua fome, e disse a si mesmo que não iria dormir. Mas dormiu, apesar de tudo.
Rogerio Rocha
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Contos de Howard - A Vingança de Black Vulmea (Originalmente publicado em 1938). Empty Re: Contos de Howard - A Vingança de Black Vulmea (Originalmente publicado em 1938).

Qua Jan 11, 2012 12:28 am
3)

Foi um grito assustador, bem próximo, que acordou Wentyard. Estava de pé antes de despertar completamente, olhando ferozmente ao redor. A lua havia se posto, o interior da câmara estava escuro como o Egito e a portada externa dela era apenas um borrão levemente mais claro. Mas, do lado externo dela, soou um gorgolejo de gelar o sangue, e o arquejar e desabar de um corpo pesado. Então, o silêncio.

Foi um ser humano que havia gritado. Wentyard tateou em busca de suas pistolas, encontrou sua espada ao invés delas e correu para a frente, seus nervos tensos tremendo. A luz das estrelas na concavidade, apesar de fraca, era menos tenebrosa que a escuridão absoluta das ruínas. Mas ele não viu a figura estendida na grama, até tropeçar nela. Foi tudo o que viu, então – apenas aquela forma indistinta estirada no chão diante da portada. A folhagem que pendia sobre o penhasco sussurrava um pouco na brisa fraca. As sombras pendiam densas sob a muralha e ao redor das ruínas. Poderia haver vinte homens escondidos próximos a ele, sem serem vistos. Mas não havia som.

Após algum tempo, Wentyard se ajoelhou ao lado da figura, forçando os olhos sob a luz das estrelas. Ele grunhiu em voz baixa. O morto não era um índio, mas um negro, um musculoso gigante de ébano, vestido, como os homens vermelhos, com uma tanga de casca de árvore e um cocar de penas de papagaio na cabeça. Um machado assassino de lâmina de cobre jazia próximo à sua mão, e um grande corte aparecia em seu peito musculoso, bem como um ferimento menor sob sua omoplata. Ele havia sido perfurado tão selvagemente, que a lâmina o trespassara e saíra por suas costas.

Wentyard praguejou diante do mistério acumulado disso. A presença do homem negro não era inexplicável. Escravos negros, fugindo de amos espanhóis freqüentemente se dirigiam para a selva e viviam com os nativos. Este negro evidentemente não compartilhava qualquer superstição ou cautela, mantida pelos índios do lado de fora da concavidade; ele havia entrado sozinho, para assassinar a vítima à qual eles tinham encurralada. Mas o mistério de sua morte permanecia. O golpe que o havia empalado havia sido dado com força maior que a comum. Havia uma sugestão sinistra em torno do episódio, embora o misterioso matador houvesse salvado Wentyard de ter os miolos arrebentados durante o sono – era como se algum ser misterioso, tendo reivindicado o inglês para si mesmo, se recusasse a ter sua presa roubada. Wentyard estremeceu, livrando-se do pensamento.

Logo, ele percebeu que estava armado apenas com sua espada. Havia corrido meio adormecido para fora das ruínas, deixando suas pistolas para trás, após uma breve procurada às cegas, a qual falhou em achá-las na escuridão. Ele se virou e correu de volta para a câmara e começou a tatear no chão – primeiramente, irritado; e depois, com crescente horror. As pistolas haviam desaparecido.

Ao perceber isto, o pânico dominou Wentyard. Ele se viu novamente do lado de fora, na luz das estrelas, sem sequer saber como havia chegado lá. Estava suando, com todos os membros tremendo e mordendo a própria língua para evitar gritar de terror histérico.

Desvairadamente, ele lutou por controle. Então, não era a imaginação que povoava aquelas ruínas medonhas com formas furtivas e sinistras, as quais deslizavam de sala em sala sombria, com pés silenciosos, e o espionavam enquanto ele dormia. Alguma coisa além dele havia estado naquela sala – alguma coisa que havia lhe roubado as pistolas, ou enquanto ele se deparava com o homem morto lá fora, ou – pensamento medonho! – enquanto dormia. Ele acreditou que este último havia sido o caso. Ele não ouvira som algum nas ruínas, enquanto estava do lado de fora. Mas por que ele não havia levado sua espada também? Eram os índios, apesar de tudo, fazendo um terrível jogo com eles? Foram os olhos deles que ele sentiu arderem sobre si desde as sombras? Mas ele não acreditava que fossem os índios. Não teriam razão para matarem o aliado negro deles.

Wentyard sentiu que estava perto do fim. Estava quase desesperado de sede e fome, e recuou diante da idéia de mais um dia de calor naquela concavidade sem água. Ele seguiu em direção à entrada da ravina, agarrando sua espada desesperadamente e dizendo a si mesmo que era melhor receber um rápido golpe de lança, do que ser perseguido por um destino desconhecido com fantasmas invisíveis, ou morrer de sede. Mas o instinto cego de viver o levou de volta ao Portão sustentado por rochas. Ele não se permitiria trocar um destino incerto pela morte certa. Sons fracos além da curva lhe diziam que homens – muitos homens – estavam esperando lá, e ele recuou, praguejando fracamente.

Num acesso fútil de raiva, ele arrastou o corpo do negro até o Portão e o empurrou através deste. Pelo menos, não o teria como companhia para envenenar o ar, quando apodrecesse no calor.

Ele se sentou a quase meio-caminho entre as ruínas e a entrada do desfiladeiro, agarrando sua espada e forçando os olhos dentro da ensombrecida luz das estrelas, e sentiu que estava sendo observado desde as ruínas; ele sentia uma Presença ali – incompreensível, inumana e esperando... esperando.


Ele ainda estava sentado ali, quando a aurora inundou a selva e penhascos com luz cinza, e um guerreiro marrom, aparecendo no Portão, curvou seu arco e mandou uma flecha em direção à figura acocorada no espaço aberto. A seta se fincou na grama próxima ao pé de Wentyard, e o homem branco se ergueu rigidamente de um pulo e correu para dentro da portada das ruínas. O guerreiro não atirou novamente. Como se assustado pela própria temeridade, ele se virou, correu de volta através do Portão e desapareceu de vista.

Wentyard cuspiu secamente e praguejou. A luz do dia dispersou alguns dos terrores fantasmagóricos da noite, e ele sofria tanto de sede, que seu medo foi temporariamente submerso. Ele estava determinado a explorar as ruínas em cada fenda e fresta, e encurralar o que quer que estivesse se ocultando entre elas. Pelo menos, ele teria a luz do dia para ajudar a enfrentar o que quer que fosse.

Com esta finalidade, ele se virou em direção à porta interna, e então parou de caminhar, com o coração na garganta. Na portada interior, havia uma grande cabaça, recém-cortada e escavada, e cheia de água; ao lado dela, uma pilha de frutas e, em outra cuia, havia carne ainda levemente fumegante. Com uma passada larga, ele alcançou a porta e olhou através dela. Só encontrou uma câmara vazia.

A visão da água e o cheiro da comida lhe expulsaram da mente todos e quaisquer pensamentos, exceto o de suas necessidades físicas. Ele agarrou a cabaça de água e bebeu sofregamente o precioso líquido que lhe salpicava o peito. A água era fresca e doce, e nenhum vinho havia lhe dado tal satisfação delirante. Ele percebeu que a carne ainda estava quente. O que era, ele nem sabia nem se importava. Comeu vorazmente, agarrando os quartos da carne em seus dedos e rasgando-a com os dentes. Fora evidentemente assada sobre uma fogueira aberta, e sem sal ou tempero, mas tinha o sabor de comida dos deuses para o homem faminto. Ele não procurou explicar o milagre, nem se perguntou se a comida estava envenenada. O misterioso habitante das ruínas, o qual lhe salvara a vida naquela noite e que lhe havia roubado as pistolas, aparentemente pretendia preservá-lo, pelo menos por enquanto, e Wentyard aceitou as dádivas sem questionar.

E, tendo comido, ele se deitou e dormiu. Não acreditava que os índios invadiriam as ruínas; ele nem se importava muito, se eles o fizessem e o perfurassem com lanças durante seu sono. Ele acreditava que o ser desconhecido, o qual habitava as salas, poderia matá-los a qualquer hora que quisesse. Havia estado perto dele várias vezes e não atacara. Não havia mostrado sinais de hostilidade até agora, exceto pelo roubo de suas pistolas. Procurar por ele poderia torná-lo hostil.

Wentyard, apesar da sede saciada e barriga cheia, chegou ao ponto de ter uma desesperada indiferença às conseqüências. Seu mundo perecia ter lhe desmoronado ao redor. Havia guiado seus homens a uma cilada, para vê-los chacinados; tinha visto seu prisioneiro escapar; ele próprio havia sido pego como um rato engaiolado; a riqueza, à qual cobiçara e com a qual sonhara, havia provado ser uma mentira. Alquebrado por fúrias em vão contra seu destino, ele dormiu.

O sol estava alto, quando ele acordou e sentou-se com uma blasfêmia sobressaltada. Black Vulmea descia o olhar para ele.

- Maldição! – Wentyard se ergueu de um pulo, apoderando-se da própria espada. Sua mente era um tumulto de emoções enlouquecidas, mas fisicamente ele era um novo homem, e estava encorajado a uma fúria que era matizada com quase-loucura.

- Seu cão! – ele rugiu – Então, os índios não lhe pegaram sobre os penhascos!

- Aqueles cães vermelhos? – Vulmea riu – Eles não me seguiram após o Portão. Eles não vêm para os penhascos acima destas ruínas. Têm um cordão de homens pela selva, cercando este lugar, mas posso atravessá-lo a qualquer momento que quiser. Cozinhei seu café-da-manhã, e o meu, debaixo de seus narizes, e eles nunca me viram.

- Meu café-da-manhã! – Wentyard arregalou ferozmente os olhos – Quer dizer que foi você quem trouxe água e comida para mim?

- Quem mais?

- Mas... mas por quê? – Wentyard se debatia num labirinto de perplexidade.

Vulmea riu, mas só com os lábios. Seus olhos ardiam:

- Bem; primeiro, eu achei que ficaria satisfeito se você recebesse uma flecha nas tripas. Então, você escapou e entrou aqui. Eu disse: “Melhor ainda! Vão manter o suíno lá, até ele passar fome, e eu vou me esconder e vê-lo morrer lentamente”. Eu sabia que eles não entrariam atrás de você. Quando emboscaram a mim e à minha tripulação na ravina, abri meu caminho através deles e entrei aqui, exatamente como você fez, e eles não me seguiram cá dentro. Mas saí daqui na primeira noite. Certifiquei-me de que você não sairia, como fiz naquela época, e então me acomodei para lhe ver morrer. Eu podia ir e vir à vontade após o cair da noite, e você nunca me veria nem ouviria.

- Mas, nesse caso, não vejo por que...

- Você provavelmente não entenderia! – rosnou Vulmea – Mas somente ver você morrer de fome não era o bastante. Eu mesmo queria lhe matar... ver seu sangue jorrar e seus olhos vitrificarem! – A voz do irlandês se engrossou de raiva, e suas mãos grandes se fecharam até os nós dos dedos ficarem brancos – E eu não queria matar um homem meio morto de fome. Assim, eu voltei para dentro da selva nos penhascos, obtive água e frutas; derrubei, com uma pedra, um macaco de um galho de árvore e o assei. Eu lhe trouxe uma boa refeição e coloquei-a lá na porta, enquanto você se sentava do lado de fora das ruínas. Você não podia me ver de onde estava sentado e, é claro, não ouviu nada. Vocês, ingleses, são todos surdos.

- E foi você quem roubou minhas pistolas na noite passada! – murmurou Wentyard, encarando as coronhas que se sobressaíam do cinto espanhol de Vulmea.

- Sim! Eu as peguei do chão ao meu lado, enquanto você dormia. Aprendi a ser furtivo com os índios da América do Norte. Eu não queria que você atirasse em mim, quando eu viesse pagar meu débito. Enquanto eu as pegava, ouvi alguém se mover sorrateiramente do lado de fora, e vi um negro se aproximando da portada. Eu não queria que ele roubasse minha vingança, e assim eu enfiei meu sabre nele. Você acordou quando ele uivou e correu para fora, como você se lembra, mas recuei ao redor do canto e adentrei outra porta. Eu não queria lhe encontrar, exceto em plena luz do dia e com você pronto para lutar.

- Então, foi você quem me espionou desde a porta interna. – murmurou Wentyard – Você, cuja sombra eu vi logo antes da lua descer atrás dos penhascos.

- Eu não! – a negação de Vulmea era sincera – Eu não entrei nas ruínas antes que a lua acabasse de se pôr, quando vim roubar suas pistolas. Então, subi os penhascos de volta e retornei logo antes do amanhecer, para lhe deixar sua comida.

“Mas chega desta conversa!”, ele rugiu borrascosamente, desembainhando seu sabre: “Estou louco pelo pensamento da costa de Galway e dos homens mortos balançando nas forcas, e da corda que me estrangulava! Já lhe enganei, já lhe pus numa cilada, e agora vou lhe matar!”.

O rosto de Wentyard era uma máscara medonha de ódio – pálido, com os dentes à mostra e os olhos mirando ferozmente.

- Cão! – ele saltou com um guincho, tentando pegar Vulmea de guarda aberta.

Mas o sabre encontrou e desviou a lâmina reta, e Wentyard pulou para trás, bem a tempo de evitar o giro decapitador do aço do pirata. Vulmea riu ferozmente e avançou como uma tempestade, e Wentyard o enfrentou com o desespero de um homem se afogando.

Como muitos oficiais da armada britânica, Wentyard era competente no uso da longa espada reta que carregava. Era quase tão alto quanto Vulmea e, embora parecesse magro ao lado da figura poderosa do pirata, ele acreditava que sua habilidade compensaria a pura força do irlandês.

Ele foi desiludido dentro dos primeiros poucos momentos da luta. Vulmea não era lento nem desajeitado. Era tão rápido quanto uma pantera ferida, e sua esgrima não era menos astuta que a de Wentyard. Ela apenas parecia assim, por causa do estilo furioso de ataque do pirata, distribuindo abundantemente golpe após golpe com o que parecia ser pura indiferença. Mas a própria ferocidade de seu ataque era sua melhor defesa, pois não dava tempo para seu oponente lançar um contra-ataque.

A força de seus golpes, batendo na lâmina de Wentyard, fez o inglês cambalear e estremecer até os calcanhares, paralisando-lhe o pulso e braço com o impacto deles. Fúria cega, humilhação e puro medo se combinaram para privar o capitão de seu equilíbrio e habilidade. Um bater de pés, um colidir mais alto de aço, e a lâmina de Wentyard girou rapidamente para um canto. O inglês cambaleou para trás, seu rosto pálido e os olhos como os de um louco.

- Pegue sua espada! – Vulmea ofegava, menos de esforço que de raiva. Wentyard não parecia ouvi-lo.

- Bah! – Vulmea lançou o sabre para um lado, numa convulsão de repugnância – Não consegue nem ao menos lutar? Vou lhe matar com minhas mãos nuas!

Ele esbofeteou maldosamente Wentyard, primeiro num lado do rosto, e depois no outro. O inglês gritou silenciosamente e se lançou ao pescoço do pirata, e Vulmea o deteve com um tapa e o deixou esparramado com um selvagem golpe no coração. Wentyard caiu de joelhos e sacudiu o sangue de seu rosto, enquanto Vulmea se erguia sobre ele, com a testa ensombrecida e os grandes punhos cerrados.

- Levante-se! – resmungou rudemente o irlandês – Levante-se, enforcador de camponeses e crianças!

Wentyard não lhe deu atenção. Ele estava tateando dentro da camisa, da qual puxou algo que ele encarava com intensidade dolorosa.

- Levante-se, maldito, antes que eu chute sua cara!

Vulmea parou subitamente, olhando de maneira fixa e incrédula. Wentyard, agachado sobre o objeto que havia tirado da camisa, chorava em grandes e torturantes soluços.

- Que diabos?! – Vulmea o arrancou dele, consumido pela dúvida sobre o que poderia arrancar lágrimas de John Wentyard. Era uma miniatura habilmente pintada. O golpe que ele dera em Wentyard a havia quebrado, mas não o bastante para destruir os suaves rostos dóceis, de uma linda jovem mulher e uma criança que sorriam para o irlandês de testa franzida.

- Bem, maldito seja eu! – Vulmea olhou fixamente, do retrato quebrado em sua mão, ao homem miseravelmente agachado no chão – Sua mulher e filha?

Wentyard, com o rosto afundado nas mãos, acenou afirmativamente e em silêncio. Ele havia suportado muito durante a última noite e dia. O quebrar do retrato, que ele sempre carregava sobre o coração, foi a última gota; parecia um ataque no único ponto suave de sua alma dura, e isso o deixou aturdido e sem coragem.

Vulmea franziu ferozmente a testa, mas isso, de alguma forma, pareceu forçado.

- Eu não sabia que você tinha uma esposa e filha. – ele disse, quase defensivamente.

- A menina tem apenas cinco anos. – ofegou Wentyard – Eu não as vejo há quase um ano. Meu Deus, o que será delas agora? O pagamento de um capitão de armada não é muito grande. Nunca fui capaz de economizar nada. Foi por elas que naveguei em busca de Van Raven e seu tesouro. Eu esperava conseguir um prêmio que servisse para elas, se algo acontecesse comigo. Mate-me! – ele gritou de forma estridente, sua voz se estalando à intensidade mais alta – Mate-me e acabe com isso, antes que eu perca minha coragem com o pensamento nelas e implore por minha vida como um cão covarde!

Mas Vulmea continuou olhando para ele, com um franzir de testa. Várias expressões lhe cruzaram o rosto moreno e, subitamente, ele colocou o retrato de volta na mão do inglês.

- Você é uma criatura desprezível demais para eu sujar minhas mãos com você! – ele zombou e, virando-se nos calcanhares, caminhou através da porta interna.

Wentyard o fitou apaticamente e depois, ainda de joelhos, começou a acariciar o retrato quebrado, chorando suavemente como um animal dolorido, como se a quebra do marfim fossem ferimentos em sua própria carne. Os homens enfraquecem súbita e inesperadamente nos trópicos, e o colapso de Wentyard foi aterrador.

Ele não olhou para cima, quando o rápido bater de botas anunciou o súbito retorno de Vulmea, sem a usual furtividade do pirata. Um súbito aperto em seu ombro o fez olhar estupidamente para o rosto convulsionado do irlandês.

- Você é um cão infernal! – rosnou Vulmea, numa fúria que diferia estranhamente de seu ódio assassino de antes. Ele se rompeu em pragas medonhas, amaldiçoando Wentyard com toda a competência que havia adquirido em seus anos no mar – Eu deveria partir seu crânio. – ele ofegou – Durante anos, sonhei com isso, especialmente quando estava bêbado. Sou um maldito idiota em não lhe derrubar morto ao chão. Não lhe devo consideração alguma, maldito seja! Sua esposa e filha não significam nada para mim. Mas eu sou um idiota, como todos os irlandeses; um idiota arruinado, sentimental e covarde, e não quero ser motivo para uma mulher indefesa e a menina dela passarem fome. Levante-se e pare de choramingar!

Wentyard olhou estupidamente para ele:

- Você... você voltou para me ajudar?

- Eu poderia também lhe apunhalar, ou lhe deixar passando fome aqui! – rugiu o pirata, embainhando a espada – Levante-se e ponha seu espeto de volta na bainha. Quem imaginaria que alguém como você teria mulheres como aquelas inocentes? Fogo do inferno! Você deveria ser baleado! Pegue sua espada. Você pode precisar dela, antes de irmos embora. Mas lembre-se: não confio em você, e estou guardando suas pistolas. Se tentar me apunhalar quando eu não estiver olhando, eu quebro sua cabeça com o cabo de meu sabre.

Wentyard, feito um homem atordoado, recolocou a pintura cuidadosamente no peito e, mecanicamente, pegou sua espada e a embainhou. Seu raciocínio entorpecido começou a se descongelar, e ele tentou se mover, com dificuldade.

- O que faremos agora? – ele perguntou.

- Cale a boca! – rosnou o pirata – Vou lhe salvar, em consideração à dama e à menina, mas não tenho obrigação de falar com você! – Com rara harmonia, ele continuou logo depois: – Deixaremos esta armadilha da mesma forma como vim e fui.

“Ouça: quatro anos atrás, eu vim aqui com 100 homens. Eu tinha ouvido rumores de uma cidade arruinada aqui, e achei que pudesse haver um espólio escondido nela. Segui a velha estrada desde a praia, e aqueles cães marrons deixaram que eu e meus homens entrássemos na ravina, antes que começassem a nos trucidar. Devia haver 500 ou 600 deles. Eles nos procuraram desde as paredes, e então nos atacaram – alguns adentraram a ravina, e outros pularam as paredes atrás de nós e nos eliminaram. Fui o único que escapou, e consegui abrir meu caminho através deles e correr para dentro desta concavidade. Eles não me seguiram aqui dentro, mas ficaram do lado de fora do Portão, para verificarem que eu não saí.

“Mas encontrei outro caminho – uma laje havia caído da parede de uma sala, a qual fora construída contra o penhasco, e uma escadaria foi esculpida na rocha. Eu a segui e saí de uma espécie de porta alçapão no alto dos penhascos. Havia uma laje de pedra sobre ela, mas não acho que os índios soubessem dela, porque eles nunca sobem os penhascos que se sobressaem sobre a água. Eles também nunca entram aqui pela ravina. Há algo que eles temem aqui – fantasmas, é o mais provável.

“Os penhascos descem para dentro da selva, nos lados externos; e as inclinações e o topo são cobertos por árvores e matagais. Eles tinham um cordão humano lançado ao redor da base das inclinações, mas eu o atravessei facilmente à noite, abri caminho até a costa e naveguei embora com o punhado de homens que deixei a bordo de meu navio.

“Quando você me capturou, eu estava prestes a lhe matar com meus grilhões, mas você começou a falar sobre tesouro, e um pensamento me veio à mente: o de lhe guiar para dentro de uma armadilha da qual eu pudesse provavelmente sair. Lembrei-me deste local, e misturei várias verdades com algumas mentiras. As Presas de Satã não são um mito; são um tesouro de jóias, escondido em algum local nesta costa, mas este não é o lugar. Não há pilhagem ao redor daqui.

“Os índios têm um círculo de homens ao redor deste lugar, como tinham antes. Eu posso atravessar, mas não será tão fácil lhe fazer atravessar. Vocês, ingleses, são como búfalos quando caminham pelo mato. Sairemos logo após o escurecer, e tentaremos atravessar antes do erguer da lua.

“Vamos; vou lhe mostrar a escada”.

Wentyard o seguiu através de uma série de salas arruinadas e emaranhadas por videiras, até parar diante do penhasco. Uma laje grossa se inclinava contra a parede, que obviamente servia como porta. O inglês viu um lance de degraus estreitos, esculpido na rocha sólida, subindo através de um estreito túnel aberto no penhasco.

- Eu pretendia bloquear a abertura superior, amontoando rochas grandes na laje que a cobre. – disse Vulmea – Isso foi quando eu pretendia deixá-lo passar fome. Eu sabia que você poderia encontrar a escada. Duvido que os índios saibam qualquer coisa sobre ela, pois eles nunca entraram aqui nem escalaram os penhascos. Mas sabem que um homem pode ser capaz de sair por cima dos penhascos, de alguma forma, de modo que lançaram aquele cordão ao redor das inclinações.

“O negro a quem matei era um problema diferente. Um navio escravo naufragou nesta costa há um ano, os negros escaparam e se dirigiram para a selva. Há um povaréu regular deles, vivendo em algum lugar próximo daqui. Este negro em particular não tinha medo de entrar nas ruínas. Se houverem mais da natureza dele lá fora com os índios, eles podem tentar novamente esta noite. Mas acredito que ele era o único, ou não teria vindo só”.

- Por que não subimos o penhasco agora e nos escondemos por entre as árvores? – Wentyard perguntou.

- Porque poderíamos ser vistos pelos homens que vigiam sob as inclinações, eles achariam que fugiríamos à noite e redobrariam sua vigilância. Daqui a pouco, irei buscar um pouco de comida. Eles não me verão.

Os homens retornaram ao quarto onde Wentyard dormiu. Vulmea ficou taciturno, e Wentyard não tentou conversar. Ficaram em silêncio enquanto a tarde se arrastava. Mais ou menos uma hora antes do pôr-do-sol, Vulmea se ergueu com uma palavra curta, subiu a escada e emergiu nos penhascos. De entre as árvores, ele derrubou um macaco com uma pedra habilmente lançada, o esfolou e trouxe para dentro das ruínas, juntamente com uma cabaça contendo água tirada de uma nascente na encosta. Apesar de toda a sua habilidade na selva, ele não sabia que estava sendo observado; ele não viu o selvagem rosto negro que o olhava ferozmente, desde um matagal que se erguia onde os penhascos começavam a se inclinar para dentro da selva lá embaixo.

Mais tarde, quando ele e Wentyard estavam assando a carne sobre uma fogueira construída nas ruínas, ele ergueu a cabeça e aguçou intensamente os ouvidos.

- O que você ouve? – perguntou Wentyard.

- Um tambor. – grunhiu o irlandês.

- Estou ouvindo. – disse Wentyard, após um momento – Não há nada de estranho nisso.

- Ele não soa como um tambor indígena. – respondeu Vulmea – Soa mais como um tambor africano.

Wentyard balançou a cabeça positivamente; uma vez, seu navio havia ficado próximo aos manguezais da Costa dos Escravos, e ele ouvira tais tambores retumbando uns para os outros através da noite vaporosa. Havia uma sutil diferença, no ritmo e timbre, a qual o distinguia de um tambor indígena.

O entardecer se aproximou e transformou lentamente em penumbra. O tambor parou de pulsar. Nas colinas baixas, além do círculo de penhascos, uma fogueira brilhava sob as árvores escuras, salientando agudamente rostos marrons e negros.

Um índio, cujos adornos e porte o caracterizavam como um chefe, se acocorava com o rosto imóvel voltado para o gigante de ébano que o encarava. Este homem era quase uma cabeça mais alto que qualquer outro ali, suas proporções obscurecendo tanto os índios que se acocoravam ao redor da fogueira, quanto os guerreiros negros que se encontravam num grupo fechado atrás dele. Um manto de pele de jaguar estava lançado negligentemente sobre seus ombros vigorosos, e braceletes de cobre lhe ornamentavam os braços musculosos. Havia um anel de marfim sobre sua cabeça, e penas de papagaio se inclinavam de seu cabelo crespo. Um escudo, de madeira dura e pele endurecida de touro, se encontrava no seu braço esquerdo e, em sua mão direita, ele segurava uma grande lança, cuja lâmina de ferro martelado era tão larga quanto a mão de um homem.

- Vim rapidamente, quando ouvi o tambor. – ele disse guturalmente, no Espanhol adulterado que servia como linguagem comum para selvagens de ambas as cores – Eu sabia que era N’Onga quem me chamou. N’Onga havia saído de meu acampamento para buscar Ajumba, que estava demorando com sua tribo. N’Onga me contou, pela conversa do tambor, que um homem branco estava encurralado, e Ajumba estava morto. Vim às pressas. Agora, você diz que não ousa entrar na Velha Cidade.

- Já lhe disse que um demônio mora lá. – respondeu teimosamente o índio – Ele escolheu o homem branco para si. Ele ficará furioso, se você tentar tirá-lo dele. É morte certa entrar no reino dele.

O chefe negro levantou sua grande lança e a sacudiu de forma desafiadora:

- Eu fui escravo dos espanhóis por tempo suficiente para saber que o único demônio é um homem branco! Não tenho medo do seu demônio. Na minha terra, seus irmãos são grandes como ele, e já matei um com uma lança igual a esta. Já se passaram um dia e uma noite, desde que o branco fugiu para dentro da Velha Cidade. Por que o demônio não o devorou, nem àquele outro que se demora nos penhascos?

- O demônio não está com fome. – murmurou o índio – Ele espera até ficar com fome. Ele comeu recentemente. Quando estiver novamente faminto, ele irá pegá-los. Você é inexperiente nesta região. Não entende estas coisas.

- Entendo que Bigomba, que já foi um rei em seu próprio país, nada teme; nem homem, nem demônio. – replicou o gigante negro – Você me diz que Ajumba entrou na Velha Cidade à noite, e morreu. Eu vi seu corpo. O demônio não o matou. Um dos homens brancos o transpassou. Se Ajumba conseguiu entrar na Velha Cidade sem ser pego pelo demônio, então eu e meus 30 homens também podemos. Eu sei como o grande homem branco vai e vem entre os penhascos e as ruínas. Há um buraco na rocha, com uma laje que lhe serve de porta sobre ele. N’Onga observou desde as moitas lá no alto das inclinações, e o viu saindo e mais tarde retornando através dele. Já postei homens lá para vigiá-lo. Se os brancos saírem novamente por aquele buraco, meus guerreiros irão matá-los com lanças. Se não saírem, entraremos lá, assim que a lua se erguer. Seus homens guardam a ravina, e não podem fugir de lá. Nos os caçaremos como ratos pelas casas arruinadas.


4)

- Calma agora. – sussurrou Vulmea – Está escuro como o Inferno neste alçapão. – A penumbra havia se transformado rapidamente em escuridão. Os homens brancos tateavam o caminho deles, subindo as escadas esculpidas na rocha. Olhando para trás e para baixo, Wentyard viu a entrada inferior do alçapão como apenas um borrão um pouco mais leve no escuro. Eles continuaram subindo, tateando seus caminhos, e logo Vulmea parou com um aviso sussurrado. Wentyard, tateando, tocou-lhe a coxa, e sentiu os músculos desta se contraírem. Ele sabia que Vulmea havia posicionado seus ombros sob a laje que cobria a entrada superior, e a estava erguendo. Ele viu uma fenda aparecer subitamente na escuridão acima, delineando a cabeça inclinada e a figura projetada do irlandês.

A pedra ficou clara, e a luz das estrelas brilhou através da abertura, enfeitada pelos galhos salientes das árvores. Vulmea deixou a laje cair sobre a beirada de pedra, e começou a subir para fora do poço. Sua cabeça, ombros e quadris já haviam emergido, quando, sem aviso, uma forma negra avultou contra as estrelas, e um brilho de aço sibilou para baixo, em direção ao seu peito.

Vulmea ergueu seu sabre, e a lança retiniu contra ele, fazendo-o cambalear nos degraus com o impacto. Puxando uma pistola do cinto, com a mão esquerda, ele atirou à queima-roupa, e o negro gemeu e caiu, com a cabeça e braços pendurados na abertura. Ele derrubou o pirata ao cair, desfazendo o equilíbrio já precário de Vulmea. Ele caiu para trás, escada abaixo, levando Wentyard consigo. Doze degraus abaixo, eles eram um amontoado estatelado e, olhando para cima, viram o quadrado bem acima deles margeado por indistintas bolhas negras, as quais eles sabiam serem cabeças delineadas contra as estrelas.

- Achei que você tivesse dito que os índios nunca... – ofegou Wentyard.

- Não são índios. – resmungou Vulmea – São negros. Cimarrões (3)! Os mesmos cães que escaparam do navio escravo. Aquele tambor que ouvimos era um deles chamando os outros. Cuidado!

Lanças vieram zunindo poço abaixo, se estilhando dos degraus e resvalando nas paredes. Os brancos desceram precipitadamente os degraus, indiferentes ao risco de quebrarem os membros. Eles desabaram através da porta mais baixa, e Vulmea bateu a pesada laje nela.

- Eles logo virão descendo. – ele rosnou – Temos que amontoar pedras suficientes contra ela, para segurar... não, espere um minuto! Se eles tiverem coragem de vir de qualquer modo, eles virão pela ravina, se não puderem entrar por este caminho, ou em cordas penduradas nos penhascos. Este lugar é muito fácil de entrar... não tão fácil de sair. Deixaremos o poço aberto. Se vierem por este caminho, podemos pegá-los aglomerados enquanto tentam sair.

Ele puxou a laje para um lado, ficando cuidadosamente afastado da porta.

- E se eles entrarem pela ravina e por este caminho também?

- Eles provavelmente irão – rosnou Vulmea –; mas talvez venham primeiro por este caminho e, se eles vierem em grupo, talvez nós possamos matar a todos. Não deve haver mais do que uma dúzia deles. Eles nunca convencerão os índios a segui-los aqui dentro.

Ele começou, com mãos rápidas e precisas, a recarregar a pistola com a qual havia disparado. Havia gastado o último grão de pólvora no polvorinho. Os homens brancos se moviam furtivamente, como fantasmas da morte, ao redor da porta da escada, esperando para atacarem súbita e mortalmente. O tempo se arrastou. Nenhum som veio de cima. A imaginação de Wentyard trabalhava novamente, visualizando uma invasão desde a ravina, e figuras escuras deslizando ao redor deles e cercando a câmara. Ele falou sobre isto, e Vulmea sacudiu a cabeça:

- Quando vierem, eu os ouvirei; nada com duas pernas consegue entrar aqui sem que eu perceba.

Súbito, Wentyard notou um brilho fraco se espalhando pelas ruínas. A lua estava se erguendo acima dos penhascos. Vulmea praguejou:

- Não há chance de fugirmos esta noite. Talvez aqueles cães negros estivessem esperando que a lua aparecesse. Entre na sala onde você dormiu, e vigie a ravina. Se você vê-los se esgueirando naquele caminho, me avise. Posso dar conta de qualquer um que desça a escada.

Wentyard sentiu a pele se arrepiar, enquanto atravessava aquelas câmaras obscuras. O luar brilhava através de trepadeiras emaranhadas pelos tetos quebrados, e havia sombras espessas de um lado a outro da trilha. Ele alcançou a sala onde havia dormido, e onde os carvões da fogueira ainda brilhavam obtusamente. Começou a atravessar em direção à porta mais externa, quando um som suave o fez girar rapidamente. Um grito foi arrancado de sua garganta.

Da escuridão de um canto, saía uma forma oscilante; uma grande cabeça em forma de cunha, e um pescoço arqueado se destacavam contra o luar. Num instante de abalar o cérebro, o mistério das ruínas ficou claro para ele; ele soube o que havia observado-o com olhos sem pálpebras, enquanto ele dormia, e o que havia deslizado da porta quando ele acordou – ele soube por que os índios não entravam nas ruínas, nem subiam os penhascos acima delas. Estava cara a cara com o demônio da cidade abandonada, finalmente faminto – e o demônio era uma sucuri gigante!

Naquele momento, Wentyard experimentou um medo e um repugnante horror, os quais só costumam acometer os homens em pesadelos terríveis. Não conseguia correr e, após o grito, sua língua parecia congelada no céu de sua boca. Somente quando a horrenda cabeça disparou em sua direção, ele se libertou da paralisia que o envolvera, e então era tarde demais.

Ele a atacou selvagem e futilmente; e, num instante, ela o tinha – enrolado e envolvido em seus anéis, que eram como enormes cabos de aço frio e flexível. Ele guinchou outra vez, lutando loucamente contra o aperto esmagador... ele ouviu o rápido movimento das botas de Vulmea... logo, as pistolas do pirata atiraram juntas, e ele ouviu claramente o golpe das balas dentro do grande corpo da cobra. Ela se sacudiu convulsivamente e se afastou dele às vergastadas, lançando-o estatelado no chão, e então se dirigiu a Vulmea como a investida de um furacão pelo capim, sua língua bifurcada saindo e entrando sob o luar, e o barulho de seu sibilar preenchendo a sala.

Vulmea evitou o impacto de aríete do nariz obtuso, com um pulo dado antes, capaz de envergonhar um jaguar faminto, e seu sabre brilhou ao luar, quando talhou profundamente o enorme pescoço. O sangue esguichou, e o grande réptil rolou e se emaranhou, varrendo o chão e as pedras desalojadas da parede com sua cauda que açoitava. Vulmea deu um pulo alto, evitando-a quando ela açoitava, mas Wentyard, que mal havia ficado em pé, foi golpeado e ficou esparramado num dos cantos. Vulmea estava pulando novamente para baixo, o sabre erguido, quando o monstro rolou para o lado e fugiu através da porta interna, se arrastando ruidosamente através da vegetação espessa.

Vulmea estava atrás dele, com sua fúria berserk despertada. Ele não queria que o réptil ferido rastejasse para longe e se escondesse, para talvez retornar mais tarde e pegá-los de surpresa. A perseguição atravessava câmara após câmara, numa direção que nenhum dos homens havia seguido em suas explorações anteriores e, finalmente, para dentro de uma sala quase entupida por trepadeiras emaranhadas. Afastando-as para os lados, Vulmea olhou fixamente para uma abertura negra na parede, bem a tempo de ver o monstro desaparecendo em suas profundezas. Wentyard, com todos os membros tremendo, havia seguido e agora olhava sobre o ombro do pirata. Um ranço reptiliano saía da abertura, a qual eles agora viam ser uma porta arcada, parcialmente coberta por grossas trepadeiras. Havia luar suficiente se infiltrando pelo teto, para revelar um vislumbre de degraus de pedra que subiam escuridão adentro.

- Não vi isto. – murmurou Vulmea – Quando encontrei a escada, não procurei por outra saída. Veja como a soleira da porta brilha com escamas que foram esfregadas para fora da barriga daquele animal. Ele a usa freqüentemente. Creio que aqueles degraus levam até um túnel que atravessa os penhascos. Não há nada nesta concavidade que mesmo uma cobra possa comer ou beber. Ele tem que sair até a selva, para pegar água e comida. Se ele tivesse o hábito de sair pela ravina, haveria uma trilha desgastada através da vegetação, como aqui na sala. Além disso, os índios não ficariam na ravina. A menos que haja alguma outra saída, à qual não achamos, acredito que ele entre e saia por este caminho, e isso significa que ele guia para o mundo externo. Vale a pena tentar, de qualquer forma.

- Você pretende seguir aquele demônio, dentro desse túnel negro? – Wentyard exclamou horrorizado.

- Por que não? Temos que segui-lo e matá-lo, de qualquer forma. Se nos depararmos com um ninho deles... bem, nós temos de morrer algum dia e, se esperarmos aqui por muito tempo, os cimarrões cortarão nossas gargantas. Esta é uma chance de escapar, eu acredito. Mas não andaremos no escuro.

Apressando-se de volta à sala onde haviam assado o macaco, Vulmea pegou um feixe de lenha, enrolou uma tira rasgada de sua camisa ao redor de um dos paus e o deixou ardendo nos carvões, os quais ele soprou, atiçando uma fina chama. A tocha improvisada palpitava e expelia fumaça, mas lançava alguma luz. Vulmea retornou, a passos largos, para a câmara onde a cobra havia desaparecido, seguido por Wentyard, que ficava bem dentro do círculo dançante de luz, e via serpentes se retorcendo em cada trepadeira que oscilava no alto.

A tocha revelava sangue densamente salpicado nos degraus de pedra. Espremendo-se entre as trepadeiras emaranhadas, que não deixavam um corpo humano entrar tão facilmente quanto o de uma cobra, eles subiram cautelosamente os degraus. Vulmea seguiu primeiro, segurando a tocha no alto e à frente de si, o sabre na mão direita. Ele havia jogado fora as pistolas vazias e inúteis. Subiram meia dúzia de degraus, e adentraram um túnel de uns quatro metros e meio de largura, e talvez três metros de altura, do chão de pedra ao teto abobadado. O ranço de serpente e o brilho do chão indicavam longa ocupação pelo animal, e as gotas de sangue continuavam seguindo à frente deles.

As paredes, chão e teto do túnel estavam em estado de preservação bem melhor que as ruínas do lado de fora, e Wentyard encontrou tempo para se maravilhar com a habilidade da antiga raça que o havia construído.

Enquanto isso, na câmara iluminada pela lua à qual haviam acabado de deixar, um gigante negro apareceu tão silenciosamente quanto uma sombra. Sua grande lança brilhava ao luar, e as plumas em sua cabeça farfalhavam enquanto ele girava para olhar ao seu redor. Quatro guerreiros o seguiam.

- Eles entraram naquela porta. – disse um deles, apontando para a entrada emaranhada por trepadeiras – Eu vi a tocha deles sumir dentro dela. Mas eu temia segui-los sozinho, e corri para lhe contar, Bigomba.

- Mas, e quanto aos gritos e o tiro que ouvimos pouco antes de descermos o poço? – perguntou outro, inquieto.

- Acho que eles encontraram o demônio e o mataram. – respondeu Bigomba – Depois, entraram por esta porta. Talvez seja um túnel que guia através dos penhascos. Um de vocês, reúna o restante dos guerreiros que estão dispersos pelas salas, à procura dos cães brancos. Tragam tochas com vocês. Quanto a mim, seguirei com os outros três ao mesmo tempo. Bigomba enxerga como um leão no escuro.

Enquanto Vulmea e Wentyard avançavam pelo túnel, Wentyard observava, amedrontado, a tocha. Ela não era muito satisfatória, mas iluminava um pouco, e ele estremeceu ao pensar nela se apagando, ou queimando até se tornar um toco, e deixá se tornar um toco, e deixele estremeceu ao pensar nela se apagando, ou queimando at-los na escuridão. Ele forçou os olhos contra a escuridão adiante, esperando, por um momento, ver uma forma vaga e horrenda se erguer em meio a ela. Mas, quando Vulmea parou subitamente, não foi por conta de alguma aparição do réptil. Eles haviam alcançado um ponto no qual um corredor menor se ramificava do túnel principal, seguindo para a esquerda.

- Qual direção devemos tomar?

Vulmea se curvou sobre o chão, abaixando sua tocha.

- As gotas de sangue seguem para a esquerda. – ele grunhiu – Ela foi por esse caminho.

- Espere! – Wentyard agarrou-lhe o braço e apontou ao longo do túnel principal – Veja! À nossa frente! Luz!

Vulmea pôs a tocha atrás de si, pois seu brilho trêmulo fazia as sombras parecerem mais negras além de seu raio fraco. À frente deles, em seguida, ele viu algo semelhante a uma flutuante névoa cinza, e percebeu que era o luar adentrando, de alguma forma, o túnel. Abandonando a perseguição ao réptil ferido, os homens correram para diante e saíram numa larga sala quadrada, escavada na rocha sólida. Mas Wenyard praguejou em amarga decepção. O luar vinha, não de uma porta que se abria para a selva, mas de uma abertura quadrada no teto, bem acima de suas cabeças.

Uma portada com arco se abria em cada parede, e a oposta à qual haviam entrado era fechada com uma pesada porta, corroída e desgastada pela decadência. Contra a parede à esquerda deles, havia uma imagem de pedra, mais alta que um homem; uma escultura grotesca, ao mesmo tempo humana e bestial. Um altar de pedra se erguia diante dela, sua superfície sulcada e obscuramente manchada. Alguma coisa no peito do ídolo capturava o luar num lampejo gelado.

- Diabo! – Vulmea pulou para a frente e o arrancou. Ele o ergueu: algo parecido com o colar de um gigante, feito de placas unidas de ouro batido, cada uma tão larga quanto a palma da mão de um homem e incrustada com jóias de corte curioso.

- Pensei ter mentido quando falei que havia jóias aqui. – grunhiu o pirata – Parece que, sem saber, falei a verdade! Estas não são as Presas de Satã, mas vão render uma fortuna considerável em qualquer lugar da Europa.

- O que está fazendo? – indagou Wentyard, enquanto o irlandês punha o enorme colar sobre o altar e erguia o sabre. A resposta de Vulmea foi um golpe que dividiu o ornamento em duas metades iguais. Uma delas, ele colocou nas mãos pasmadas de Wentyard.

- Se sairmos vivos daqui, isso servirá para a mulher e a criança. – ele grunhiu.

- Mas você... – gaguejou Wentyard – Você me odeia... mas salva minha vida, e depois me dá isto...

- Cale a boca! – rosnou o pirata – Não estou dando isso a você; estou dando à garota e à filha dela. Não se atreva a me agradecer, maldito! Eu lhe odeio tanto quanto eu...

Ele se enrijeceu de repente, girando para olhar para o túnel pelo qual haviam chegado. Ele apagou a tocha com o pé e se agachou atrás do altar, puxando Wentyard consigo.

- Homens! – ele rosnou – Entrando no túnel; ouvi aço tilintando na pedra. Espero que não tenham visto a tocha. Talvez não o tenham. Não era mais que uma brasa no luar.

Eles forçaram os olhos em direção ao túnel. A lua pairava num ângulo acima do poço aberto, o qual permitia que um pouco de sua luz fluísse por um caminho curto dentro do túnel. A visão parava no ponto onde o pequeno corredor se ramificava. No momento seguinte, quatro sombras se destacaram da escuridão além, tomando forma gradualmente, como figuras emergindo de um espesso nevoeiro. Eles pararam, e os brancos viram o maior deles – um gigante que se erguia acima dos outros – apontar silenciosamente com sua lança para dentro do túnel, e depois para fora do corredor. Duas das formas indistintas se separaram do grupo e se moveram para fora do corredor, fora de vista. O gigante e o outro homem adentraram o túnel.

- Os cimarrões, nos caçando. – murmurou Vulmea – Estão dividindo seu grupo, para garantir que nos acharão. Deite-se; pode haver um bando inteiro atrás deles.

Eles se agacharam mais ainda atrás do altar, enquanto os dois negros adentravam o túnel, ficando mais nítidos enquanto avançavam. A pele de Wentyard se arrepiou diante da visão das lanças de lâminas largas, erguidas e prontas em suas mãos. O maior deles se movia com o passo flexível de uma grande pantera, a cabeça lançada para a frente, lança equilibrada e escudo erguido. Era uma imagem formidável de feroz barbarismo, e Wentyard se perguntou se até mesmo um homem como Vulmea era capaz de resistir a ele com aço nu e viver.

Pararam no vão da porta, e os homens brancos lhes captaram o clarão alvo dos olhos, enquanto olhavam desconfiados ao redor da câmara. O negro menor agarrou convulsivamente o braço do gigante e apontou, e o coração de Wentyard lhe pulou até a garganta. Achou que tivessem sido descobertos, mas o negro estava apontando para o ídolo. O homem grande grunhiu desdenhosamente. Contudo, apesar de possivelmente escravo do temor dos fetiches de sua costa nativa, os deuses e demônios de outras raças não continham nenhum terror para ele.

Mas ele se moveu majestosamente para diante, para investigar, e Wentyard percebeu que a descoberta era inevitável.

Vulmea lhe sussurrou ferozmente no ouvido:

- Temos que pegá-los logo! Pegue o bravo. Pegarei o chefe. Agora!

Eles se ergueram juntos de um pulo, e os negros gritaram involuntariamente, recuando das aparições inesperadas. Naquele instante, os brancos estavam sobre eles.

O choque de suas súbitas aparições havia atordoado o negro menor. Ele era pequeno apenas em comparação ao seu gigantesco camarada. Era tão alto quanto Wentyard, e os grandes músculos se emaranhavam sob sua pele lustrosa. Mas ele estava cambaleando para trás, estupidamente boquiaberto, lança e escudo abaixados em braços molemente pendurados. Somente o fio do aço lhe devolveu a consciência, e então já era tarde demais. Ele gritou e estocou loucamente, mas a espada de Wentyard lhe havia afundado nas partes vitais, e sua estocada foi a esmo. O inglês se esquivou para um lado e enfiou novamente, e novamente, abaixo e acima do escudo, afundando sua espada na virilha e garganta. O negro oscilou em sua arremetida, seus braços descaíram, escudo e lança se espatifaram ruidosamente ao chão, e ele desabou sobre esses.

Wentyard se virou para fitar a luta que oscilava atrás de si, onde os dois gigantes duelavam sob o raio quadrado do luar: negro e branco, lança e escudo contra sabre.

Bigomba, de pensamento mais rápido que seu seguidor, não havia se aturdido sob o avanço inesperado do branco. Havia reagido instantaneamente ao seu instinto de luta. Ao invés de fugir, ele havia erguido o escudo para aparar o sabre que girava para baixo, e havia contra-atacado com uma estocada feroz, a qual tirou um pouco de sangue do pescoço do irlandês, enquanto ele se esquivava para um lado.

Agora lutavam em silêncio sombrio, enquanto Wentyard se movia em círculos ao redor deles, incapaz de dar uma estocada que não pusesse Vulmea em perigo. Ambos se moviam com a rapidez segura e infalível de tigres. O negro era mais alto que o branco, mas até mesmo suas proporções magníficas não conseguiam obscurecer o físico vigoroso do pirata. No luar, os grandes músculos de ambos os homens se emaranhavam, ondulavam e enroscavam devido aos seus esforços hercúleos. A ação era desorientadora, quase cegando o olho que tentasse acompanhá-la.

Repetidas vezes, o pirata mal evitava a arremetida da grande lança; e, repetidas vezes, Bigomba aparava em seu escudo um golpe que, de outro modo, o teria cortado em pedaços. Somente a rapidez dos pés e a força do pulso salvavam Vulmea, pois ele não tinha armadura defensiva. Mas ele, repetidamente, se esquivava – às vezes, pulando para um lado – das estocadas selvagens, ou desviava a lança para um lado com sua lâmina. E ele despejava golpe após golpe, com seu sabre, rasgando a pele de touro em tiras, até o escudo se tornar pouco mais que uma estrutura de madeira, através da qual, deslizando numa estocada semelhante à de um relâmpago, o sabre tirou o primeiro sangue ao arranhar a carne que cobria as costelas do chefe negro.

Com isso, Bigomba rugiu como um leão ferido, e como um leão ferido, ele saltou. Arremessando o escudo em direção à cabeça de Vulmea, ele lançou todo o corpo gigante por trás do braço que dirigia a lança ao peito do irlandês. Os músculos se sobressaíam em feixes palpitantes no seu braço, quando ele atacou, e Wentyard gritou, incapaz de acreditar que Vulmea pudesse evitar a investida. Mas um relâmpago bifurcado era lento, comparado com o salto do pirata. Ele se esquivou, pulando para um lado, e, enquanto a lança lhe passava sob a axila, ele fez um corte que não encontrou escudo no caminho. O sabre era um tremular cegante de aço ao luar, terminando seu arco num rangido de açougue. Bigomba caiu como uma árvore e jazeu imóvel. Sua cabeça havia sido quase totalmente separada do corpo.

Vulmea deu um passo para trás, ofegando. Seu peito enorme arfava sob a camisa esfarrapada e o suor lhe pingava do rosto. Afinal, ele quase havia encontrado um páreo para ele, e o esforço daquele terrível combate lhe deixou os tendões das coxas tremendo.

- Temos que sair daqui, antes que o restante deles venha. – ele ofegou, pegando sua metade do colar do ídolo – Aquele corredor menor deve levar para fora, mas aqueles negros estão dentro dele, e não temos nenhuma tocha. Vamos tentar esta porta. Talvez possamos sair por esse caminho.

A antiga porta era uma massa apodrecida de madeira decomposta e faixas de cobre corroído. Ela quebrou e se estilhou sob o impacto do pesado ombro de Vulmea, e, através das aberturas, o pirata sentiu o movimento de ar fresco e sentiu o cheiro do vapor de um rio úmido. Ele recuou para se chocar novamente contra a porta, quando um coro de gritos ferozes o fez girar rosnando, como um lobo numa armadilha. Pés rápidos rufavam dentro do túnel, tochas tremulavam e gritos bárbaros ressoavam sob o teto em forma de arco. Os brancos viram uma multidão de rostos ferozes e lanças reluzentes, realçada pelas tochas lampejantes, vindo como uma onda pelo túnel. A luz de sua chegada se estendia diante deles. Eles haviam escutado e interpretado os sons de combate enquanto se apressavam pelo túnel, e agora haviam avistado seus inimigos e irromperam numa corrida, uivando como lobos.

- Quebre a porta, rápido! – gritou Wentyard.

- Não há tempo agora. – grunhiu Vumea – Eles nos alcançariam antes que pudéssemos atravessá-la. Iremos resistir aqui.

Ele correu para o outro lado da câmara, para enfrentá-los antes que pudessem emergir da relativamente pequena porta arcada, e Wentyard o seguiu. O desespero dominou o inglês e, num espasmo de fúria inútil, ele arremessou a sua metade do colar. O brilho de suas jóias era zombaria. Ele lutou contra a lembrança saudosa daqueles que o esperavam na Inglaterra, enquanto tomava seu lugar diante da porta, ao lado do pirata gigante.

Quando viram suas presas acuadas, os uivos dos negros que se aproximavam ficaram ainda mais selvagens. Lanças eram brandidas entre as tochas – então, um guincho de timbre diferente cortou a algazarra. Os negros mais adiantados haviam quase alcançado o ponto onde o corredor se ramificava do túnel... e uma figura desvairada saiu apressadamente do corredor. Era um dos negros que havia adentrado o túnel para explorá-lo. E, atrás dele, vinha um pesadelo manchado de sangue. A grande serpente havia ficado finalmente encurralada.

Ela estava entre os negros, antes que eles soubessem o que estava acontecendo. Brados de ódio se transformaram em gritos de terror e, num instante, tudo era loucura; uma confusão aglomerada de corpos negros se debatendo, e aquele grande e sinuoso tronco em forma de cabo, se retorcendo e açoitando entre eles, a cabeça em forma de cunha se arremessando e espancando. Tochas foram batidas contra as paredes, espalhando faíscas. Um homem, pego entre as espirais que se retorciam, foi esmagado e morto quase instantaneamente, e outros foram lançados ao chão ou arremessados, com uma força de quebrar os ossos, contra as paredes pela cabeça que açoitava como um aríete, ou pela cauda em forma de viga, que chicoteava. Apesar de baleada, talhada e mortalmente ferida, a grande serpente se agarrava à vida com a terrível vitalidade de sua espécie, e, na fúria cega de suas convulsões, se tornou uma aterrorizante máquina de destruição.

Em questão de momentos, os negros sobreviventes escaparam e fugiram pelo túnel, gritando de medo. Meia dúzia de corpos flácidos e quebrados jazia esparramada atrás deles; e a serpente, se desprendendo destas vítimas, precipitou-se para dentro do túnel, atrás dos vivos que fugiam dela. Fugitivos e perseguidores desapareceram dentro da escuridão, da qual gritos frenéticos saíam fracamente.

- Deus! – Wentyard enxugou sua testa com uma mão trêmula – Aquilo poderia ter acontecido conosco!

- Aqueles homens que foram tateando pelo corredor devem ter se esbarrado sobre ela no escuro. – murmurou Vulmea – Acho que ela se cansou de correr. Ou talvez soubesse que estava mortalmente ferida, e voltou para matar alguém antes de morrer. Ela perseguirá aqueles negros até matar a todos, ou ela própria morrer. Eles devem se voltar para ela e estocá-la com lanças até a morte, quando chegarem ao ar livre. Pegue sua parte do colar. Vou tentar abrir aquela porta novamente.

Foram necessárias três poderosas arremetidas de seu ombro, antes que a antiga porta finalmente cedesse. O ar puro e úmido entrou, embora estivesse escuro lá dentro. Mas Vulmea entrou sem hesitação, e Wentyard o seguiu. Após poucos metros tateando no escuro, o estreito corredor virou rapidamente para a esquerda, e eles saíram numa passagem um pouco mais larga, onde um ranço familiar e nauseante fez Wentyard estremecer.

- A serpente usava este túnel. – disse Vulmea – Este deve ser o corredor, que se ramifica do túnel para o outro lado. Deve haver uma rede regular de salas e túneis subterrâneos sob estes penhascos. Eu me pergunto o que encontraríamos se explorássemos todos eles.

Wentyard repudiou fervorosamente qualquer curiosidade naquela direção e, um instante depois, pulou convulsivamente quando Vulmea falou de forma brusca e repentina:

- Olhe ali!

- Onde? Como um homem consegue ver alguma coisa nesta escuridão?

- À nossa frente, maldição! É luz na outra extremidade deste túnel!

- Seus olhos são melhores que os meus. – murmurou Wentyard, mas ele seguiu o pirata com nova ânsia, e logo pôde ver o disco minúsculo de cinza, que parecia encaixado numa sólida parede negra. Depois disso, pareceu ao inglês que ele havia caminhado milhas. Na verdade, ele não estava tão distante, mas o disco cresceu lentamente em tamanho e claridade, e Wentyard percebeu que eles haviam percorrido um longo caminho desde a sala do ídolo, quando finalmente enfiaram as cabeças numa abertura redonda e cruzada por trepadeiras, e viram as estrelas refletidas na água negra de um rio sombrio que fluía abaixo deles.

- Este é o caminho pelo qual ela veio e saiu. – grunhiu Vulmea.

O túnel se abria no declive íngreme, e havia uma estreita faixa de praia sob ele, a qual provavelmente só existia em estações secas. Desceram até ela e olharam ao redor, para as densas paredes de selva que pendiam sobre o rio.

- Onde estamos? – perguntou Wentyard, sem saber o que fazer, seu senso de direção completamente confuso.

- Além do pé das inclinações – respondeu Vulmea –; e isso significa que estamos fora do cordão que os índios lançaram ao redor dos penhascos. A costa fica naquela direção; vamos!

O sol estava bem alto no horizonte oeste, quando dois homens saíram da selva que margeava a praia, e viram a pequena baía se estendendo diante deles.

Vulmea parou na sombra das árvores:

- Lá está seu navio, ancorado onde nós o deixamos. Tudo o que você tem de fazer agora é chamá-lo para que um bote seja enviado à praia; e sua parte na aventura está encerrada.

Wentyard olhou seu companheiro. O inglês estava com contusões, arranhado por sarças e sua roupa pendendo em farrapos. Ele mal conseguia ser reconhecido como o capitão bem-arrumado do Terrível. Mas a mudança não se limitou à sua aparência. Ela foi mais profunda. Ele era um homem diferente daquele que havia trazido seu prisioneiro à praia, em busca de um tesouro místico de jóias.

- E quanto a você? Eu tenho com você uma dívida que nunca conseguirei...

- Você não me deve nada. – Vulmea interrompeu – Não confio em você, Wentyard.

O outro recuou. Vulmea não sabia que isso era a coisa mais cruel que ele podia ter dito. Ele não via isso como uma crueldade. Ele estava simplesmente dizendo o que pensava, e não lhe ocorria que isso pudesse magoar o inglês.

- Você acha que eu poderia lhe fazer mal, depois disto? – exclamou Wentyard – Pirata ou não, eu jamais poderia...

- Você agora está grato e cheio do leite da bondade humana. –Vulmea respondeu e riu severamente – Mas você pode mudar de idéia após voltar ao seu convés. John Wentyard, perdido na selva, é um homem; Capitão Wentyard, a bordo do navio de guerra do rei, é outro.

- Eu juro... – Wentyard começou fracamente, e logo parou, percebendo a futilidade de seus protestos. Ele compreendeu, com uma dor quase física, que um homem nunca pode escapar das conseqüências de um erro, mesmo que a vítima possa perdoá-lo. Seu castigo agora era uma incapacidade em convencer Vulmea da sua sinceridade, e isso o magoava muito mais amargamente do que o irlandês era capaz de perceber. Mas ele não poderia esperar que Vulmea confiasse nele, como infelizmente percebeu. Naquele momento, ele se abominava pelo que havia sido, e pela arrogância presunçosa e auto-suficiente, a qual o fizera pisar impiedosamente em todos que caíram fora do círculo encantado de sua aprovação. Naquele momento, não havia nada no mundo que ele mais desejasse do que o firme aperto de mão do homem que havia lutado e trabalhado tão extraordinariamente por ele; mas ele sabia que não merecia.

- Você não pode ficar aqui! – protestou fracamente.

- Os índios nunca vêm a esta costa. – respondeu Vulmea – Não tenho medo dos cimarrões. Não se preocupe comigo. – Ele riu novamente, daquilo que considerava o gracejo de alguém preocupado com sua segurança: – Já vivi nas selvas antes. Não sou o único pirata nestes mares. Há um ponto de encontro do qual você nada sabe. Posso alcançá-lo facilmente. Estarei de volta ao Mar Espanhol, com um navio e uma tripulação, na próxima vez em que você ouvir falar de mim.

E, dando a volta com flexibilidade, ele entrou a passos largos na folhagem e desapareceu, enquanto Wentyard, balouçando em sua mão uma faixa de ouro cravejada de jóias, o encarava debilmente.


FIM




1) Resbordo: Abertura no costado do navio, para carga e descarga (Nota do Tradutor);

2) Bordada: Descarga simultânea de todos os canhões de um dos lados do navio (N. do T.);

3) Cimarrões: Nome dado a escravos fugitivos, que criavam suas próprias comunidades – aqui, no Brasil, seriam chamados de quilombolas (idem).

Fonte: http://gutenberg.net.au/ebooks06/0601661h.html
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